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Quando conheci José Candido no jardim Revista


            Conheci José Candido em 2000, quando estivemos em sua casa no Jardim Revista. Naquela oportunidade, recém-graduado no curso de Geografia, transitávamos pelo Brasil com olhos e ouvidos bem abertos para a diversidade de culturas, lugares, paisagens e etc. Nosso primeiro contato com o Jardim Revista foi de surpresa. Toda uma porção de terra à margem direita do rio Tietê com relevo, uma terra elevada. Alguns se referem ao bairro como o morro do Revista. De fato, transitar pelas ruas ainda de terra com declividades acentuadas, não era tarefa das mais fáceis. As ruas principais, consideradas assim devido ao fluxo do transporte coletivo de passageiros, possuíam pavimentação asfáltica.
            Em 2005 pedimos ao Candido para organizar uma conversa com os moradores mais antigos do bairro. Investigávamos as origens do bairro e, principalmente, o nome do córrego no fundo do vale onde aconteciam épicas peladas (de futebol), campeonatos do bairro onde se destacava um tal goleiro de baixa estatura, considerado o Pelé debaixo das traves. Enfim, procurávamos o nome do córrego, alguma referência histórica que nos ajudasse nessa busca. Bem, na conversa e nas andanças com o Candido pelo bairro, conhecemos dona Mariinha. Uma senhora pequenina, linda, bem velhinha então que dizia morar no bairro desde antes do bairro existir. Ela nos contou passagens maravilhosas do início daquele povoamento. Sobre o nome do córrego, ela afirmou: “chama-se corguínho. Agora, quando chovia, nóis chamava de córgo.” Mariinha disse que as mulheres desciam e subiam o morro por uma trilha muito estreita, com as latas de roupa na cabeça, em direção ao córrego para lavar. Esse trajeto exigia muito esforço, mas era facilmente vencido pelas mulheres que moravam nas poucas e distantes casas entre si, e muitas crianças à volta, todas cantando dentre outras canções, esta:

Lava, lava
Lavadeira
Lava roupa o dia inteiro
De manhã tá na cozinha
À tardinha, passar um café.

Contou também que durante a lavação da roupa, as crianças brincavam na água fazendo uma algazarra. Era uma alegria... Tudo isso para nos dizer que o córrego estava ali à disposição de todos com água boa para beber, lavar roupa, cozinhar, para a alegria das crianças. A paisagem descrita por dona Mariinha e seus amigos e amigas remete à década de 1950-60. As poucas casas ficavam na parte alta do morro do jardim Revista com largos espaços entre elas. Poucos moradores que ela lembrava por sobrenome. Tudo era mato e algumas trilhas levavam para o rio e para as conexões com a cidade. Interessante perceber uma característica de Suzano: os moradores se remetem à região central, ao núcleo urbano no entorno da estação da CPTM como “Suzano”. Parece uma compreensão de periferia como não cidade, como uma outra coisa que não Suzano. Portanto, ao partir dos bairros para o centro da cidade, a pessoa parte para Suzano.
            A família Candido chegou a Suzano, especificamente ao convívio no bairro de dona Mariinha, no ano de 1973. Segundo ela, Candido chegou com o bairro já crescido.

Em vários pontos da cidade uma história se repetia, contada por gerações diferentes: o sapato na sacolinha de mercado. As pessoas saíam da casa calçando um sapato velho, um chinelo por exemplo. E numa sacola carregavam o sapato de sair. Com o sapato velho ou chinelo, seguiam por ruas não pavimentadas, cheio de barro no tempo da chuva ou poeira na estiagem. Chegando ao ponto de ônibus que, este sim, circulava por ruas pavimentadas com asfalto, os sapatos eram substituídos. Quando o sapato velho estava muito sujo, dentro da sacolinha ele ficava escondido por perto do ponto de parada aguardando para a saga do retorno entre o ponto e a casa. Tudo isso para, segundo a contação da história, não chegar com os pés sujos, o que revelava uma certa vergonha pública. Como se, na esteira do raciocínio de outrem, o limpo representando uma suposta objetividade, uma transparência, como se não existisse a subjetividade, a opacidade aqui representada pelo sujo. Como se a periferia da cidade, apesar de sua potência inovadora, representasse o sujo e os lugares nobres da cidade representassem o limpo. Quando o sujeito desloca no chão da cidade, transitam, circulam neste movimento ligam esses lugares e dimensões. Cidade e sujeito compreendidos como obra aberta.
Esta breve história coletada na realidade concreta da cidade (feminina) e do urbano (masculino) nos provocam a pensar tantas analogias. E neste movimento aparecem aberturas para produção de sentidos outros, conceitos outros, novas possibilidades de olhar para a cidade, de perspectiva-la, e de produzir-se.

Pois bem, a casa da família Candido era muito comprida. Não era grande. Como muitas casas nas periferias urbanas, várias construções distribuídas num mesmo terreno, este com forte desnível. E um longo corredor intercalando piso plano e lances de escada. Posicionada numa quadra cujo arruamento definia um triângulo fechado no cruzamento principal que garantia acesso à padaria, no pequeno centro comercial, e à parada de ônibus. Enfim, para acessar o alto do morro do Revista, uma volta grande com forte inclinação precisava ser vencida pelos pedestres. Então, contamos o que chamou muito a nossa atenção: como o corredor da casa dos Candido ligava as duas ruas, e as escadarias facilitavam o trânsito morro acima e morro abaixo, os portões entreabertos durante o dia e a casa funcionava como passagem dos moradores do entorno. Uma espécie de comunidade se estabelecia. Porta e janela da cozinha ficavam abertas permanentemente. Dona Laura, esposa do seu Candido, trabalhava na cozinha entre cumprimentos e conversas com todos que trafegavam pelo corredor. Candido, ao telefone, interrompia suas conversas para receber os vizinhos que, passando pelo corredor, ao ouvirem sua voz, paravam para um café e um dedinho de prosa. Inusitado não menor pela fruteira. Logo cedo, frutas passavam da cozinha para o corredor e eram consumidas pelos transeuntes, especialmente pelas crianças. Assuntos mais importantes eram discutidos na sala, entre brincadeira das crianças e o ruído da televisão. Uma intensa relação de vizinhança se estabelecia no fluxo do corredor que ligava a parte baixo e alta neste trecho do morro do Revista. Se nossa memória não falha muito, foi mais ou menos assim uma manhã inesquecível do ano de 1998 quando nos colocamos a pensar sobre a diluição da fronteira entre público e privado. Uma espécie de comunidade se criou ao redor de um casal, seu Candido e dona Laura, acolhedor, solidário, popular. O corredor da casa dos Candido era a brecha no Jardim Revista.

Bem, voltemos ao Candido. Mestre Candido como era chamado. Um sujeito inesquecível em sua simplicidade, carisma e sabedoria.

            Mestre Candido, uma brecha na política.