Experiência: leia o texto ouvindo a canção.
É só clicar aqui ao lado
(Este texto pode ter dois títulos: 'Esperando aviões' ou 'Pista vazia'.
Escolha aquele que você preferir.)
A canção chamada Esperando aviões diz assim:
Meus olhos te viram triste / Olhando pro infinito / Tentando ouvir o som do próprio grito / E o louco que ainda me resta / Só quis te levar pra festa / Você me amou de um jeito tão aflito / Que eu queria poder te dizer sem palavras / Eu queria poder te cantar sem canções / Eu queria viver morrendo em sua teia / Seu sangue correndo em minha veia / Seu cheiro morando em meus pulmões /
O eu lírico vê alguém triste, com olhar perdido, com um grito que vibra dentro do próprio corpo. Um grito surdo. Ao observar a cena, o eu lírico da canção percebe haver um procura, uma busca aflita como se um grito de dor, não imagino que uma dor física tipo quando a gente bate o dedinho do pé na quina da porta entreaberta. Mas uma dor que dói fundo na alma, nesta parte invisível do corpo. Ouvir o som do próprio grito desesperado de uma dor que vem do fundo da alma. Em reação, o eu lírico toma uma atitude tresloucada que resultou em festa, amor. Mas um amor aflito como uma pessoa dividida em dois amores por exemplo. São muitos amores nesta vida mas vivê-los ao mesmo tempo pode, imagino, gerar aflição. Sim porque deve ser difícil estar inteira neste ou naquele, por isso “amou de um jeito tão aflito”. Trata-se de uma leitura possível.
Então o eu lírico da canção faz uma lista dos desejos de mistura dos dois corpos: dizer sem palavras pode ser compreendida como a linguagem dos corpos, pode ser compreendida como a cumplicidade de pensamento, pode ser entendida como uma linguagem de gestos, de toques, de carinho, uma espécie de telepatia que se dá na intensidade dos encontros e na cumplicidade dos sentimentos comuns, pode ser entendida como a linguagem do amor por exemplo. É como cantar sem canções…
Então chegam imagens que considero muito bonitas:
eu queria viver morrendo em sua teia: a aranha tece a sua teia e captura os insetos para o jantar. A mulher aflita bate na porta de um antigo amor que, diante da sua figura aflita, se joga na sua teia. Mulher aranha, tecelã de encantamentos, aracniana dos mais finos fios de vida, escavadora dos sentimentos mais profundos como os amores adormecidos bem lá no fundo do coração. E é bonito pensar nesse confronto entre vida e morte. Ele queria viver morrendo na teia da aranha, viver morrendo. Mas como seria possível viver morrendo? Se morreu, acabou. Só que não. Por que?
Porque ele quer o sangue dela correndo nas veias dele. Teu sangue correndo em minhas veias pode significar que ambos estão misturados, um no outro, ele nela e ela nele. Não seria um pouco isso que acontece quando o sexo está carregado de muito desejo? nesta perspectiva, talvez a palavra amor ganhe uma pitada de pimenta, ganhe um tempero todo especial. Amor aqui compreendido como essa mistura dos corpos cujo desejo, o desejo mais profundo conduz os corpos para esse encontro. Um encontro de corpos desejosos e desejantes, um encontro vermelho cor de sangue e coração. Talvez….
Tudo isso já nos parece muito intenso. Mas o eu lírico quer mais: quer o cheiro dela morando nos pulmões dele. Alguns podem dizer de uma memória olfativa. Verdade. Mas o amor, o desejo, a alma, isso tudo tem cheiro. Eu acho até que tem cheiro e tem cor. E tem peso, e tem porosidade, e tem fantasia. Tem. Quando ela apareceu na casa dele, o sol brilhou, o dia nasceu, renasceu a vida desde as cinzas da morte. Ressurreição de amor que havia se declarado morto na decepção de uma despedida mal feita, precipitada, assustada. E basta um olhar, um toque, um cheiro para que a vida renasça em toda sua potência de amor. Amor, que palavra mais bonita. Paixão, outra palavra bonita, forte, intensa.
A canção continua:
Cada dia que passo sem sua presença / Sou um presidiário cumprindo sentença / Sou um velho diário perdido na areia / Esperando que você me leia / Sou pista vazia esperando aviões
Essa canção me provoca a pensar. Ela tem um ‘quê’ enigmático, talvez a melodia ou a voz do Vander Lee, talvez sua interpretação me apresentem um caminho entre tantos caminhos possíveis. Penso na prisão, na cadeia, mas não essa que as histórias policiais ou os programas sensacionalistas de televisão mostram todos os dias. Estou pensando numa prisão subjetiva, uma prisão que criamos para nos mesmos a partir dos preconceitos que carregamos, a partir dos dogmas, a partir dos moralismos. Penso também na polícia que criamos dentro de nós, essa parte da gente que fica o tempo todo policiando nossos pensamentos, nossas atitudes, que fica censurando as nossas palavras e os nossos desejos. Penso numa prisão subjetiva e numa polícia subjetiva, numa auto prisão e numa auto polícia. Essa por exemplo que nos leva para os caminhos da segurança e fecha o trânsito pelos caminhos mais misteriosos, incertos, esses mesmos que guardam à meia luz as possibilidades mais incríveis. Veja o exemplo de uma pessoa que escolhe a segurança em detrimento de um grande amor. Verdade que para viver um grande amor é preciso muita coragem, assim dizia um poeta que entendia de amores intensos: Vinícius de Moraes. Entendo que nos aprisionamos quando abrimos mão de viver as intensidades e as belezas, nos aprisionamos no medo, o medo como aprisionamento que impede que amores emerjam em sua força máxima, em sua enésima potência.
Diário é onde escrevemos aquilo que acontece e aquilo que nos acontece no dia a dia. Na areia ele espera para cumprir sua função. Ao ser lido, ele cumpre sua função de material portador de texto. Melancólica a imagem de uma pista vazia esperando aviões.
Cada dia que passo sem sua presença / Sou um presidiário cumprindo sentença / Sou um velho diário perdido na areia / Esperando que você me leia / Sou pista vazia esperando aviões / Sou o lamento no canto da sereia / Esperando o naufrágio das embarcações
Conheço muito bem um casal que passou, ou ainda passa, por uma situação de afastamento. Trata-se do maior amor que eu já vi, amor entre duas pessoas. Amor que tenta ser três, amor que deseja uma quarta pessoa. Ela se prende, se esconde no ciúme que sente dele. Na minha modesta opinião, no meu olhar de fora, ela se esconde de si mesma, ela tem medo do imenso amor que sente por ele e se esconde atrás do ciúme que sente dele, ela busca refúgio na segurança e tenta dar a nascer um outro amor para ofuscar o outro amor, o amor que a amedronta. É como o mar: imenso… de uma imensidão que amedronta. Quanto a ele, demorou um pouco para perceber, para aceitar para si mesmo todo o sentimento que tem por ela.
Falo de um casal girassol.
Ela brilha, ele gira e gira à procura do calor.
Ela, Sol. Ele, calor.
Sol e girassol, girassol e sol, sempre em movimento, um não vive sem o outro. Ambos se precisam, ambos se buscam, ambos se procuram, e olha que o girassol vive distante do sol, muito distante. Sol flutua na imensidão do universo e ao redor do sol todo um sistema solar. Girassol aqui na terra. Mas os raios do sol viajam anos luz e atingem docemente as flores de girassol. Se precisam, se completam. Assim eu vejo o amor desse casal, apesar dos medos dela, apesar dos medos dele, apesar das decisões dela que os afastam, apesar das tentativas dele que a assustam. Apesar das interferências de terceiros, apesar do canto das sereias com segurança e conforto, apesar das negativas, apesar dos pesares, o amor de ambos continua, permanece porque girassol gira à procura do sol, e sol faz todo o sistema solar girar em torno dele. Sol alimenta as águas, as plantas, o planeta. Sol acende corações.
Vander Lee disse numa entrevista que a canção surgiu quando ele chegava à cidade de Montes Claros, interior de Minas Gerais. Do avião ele vê a cena da pista: pista vazia esperando aviões. Sentia uma saudade imensa de casa e do seu grande amor, de onde veio a metáfora “sou pista vazia esperando aviões”. A frase ficou ali ecoando, ecoando, ecoando…
Sou pista vazia esperando aviões. Um homem só que sente saudade do seu grande amor, feito uma pista de pouso ali parada à espera de aviões para cumprir sua função de pista no aeroporto. “Sou pista vazia esperando aviões”… Tal imagem me é deveras familiar. Frequento aeroportos, frequento aviões e, das janelas observo com muita frequência pistas vazias, solitárias e talvez saudosas, esperando aviões. Bonita a imagem e mais bonita ainda a metáfora, a criação do Vander Lee: “sou pista vazia esperando aviões”. Ele, solitário numa cidade desconhecida, sentindo um vazio repleto de saudade, um vazio cheio da pessoa ausente. Saudade. “Sou pista vazia esperando aviões”. Um homem prenhe de uma ausência, ausência que se faz presença, uma presença distante. E um homem que se sente pista vazia.
Vander Lee disse ainda que concluiu rapidamente a canção assim que chegou ao hotel. E às 4h da manhã ligou para sua companheira e cantou para ela. O que será que ela sentiu neste momento, neste encontro com uma obra de arte cuja criação conta com a ausência, conta com a presença dela? Bem, isso é assunto para um outro dia…
Mais ou menos assim, veio ao mundo essa obra de arte: Sou pista vazia esperando aviões.
Maravilhoso!
ResponderExcluira inspiração é forte
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