Partiu na chalana florida



            Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link:      

Foi uma espécie de agonia. Agonia é uma palavra polissêmica. Agonia pode ser compreendida como aflição, sofrimento intenso, forte, profundo. Agonia pode ser compreendida como o instante da vida que precede imediatamente o momento da morte. Na medicina, agonia pode ser respiração cheia de ruídos feita por quem está prestes a morrer. Na música, melodia do sino que anuncia a morte de alguém. Agonia ainda pode ser compreendida como uma dificuldade para decidir, como dúvida. Mas quero trazer para esse breve texto os significados de encerramento, de conclusão, término. Final de um ciclo, fechamento, partida. Maria Witzel Jordão partiu na manhã de 12 de setembro de 2021. Ela partiu numa chalana florida antecipando a primavera. 

Lá vai uma chalana, bem longe se vai / Navegando no remanso do Rio Paraguai / Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas vai levando o meu amor

Mariquinha cantava para nós. Ela nos apresentou seu repertório de Vicente Celestino, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Orlando Silva e outros. Dentre as canções mais recentes, a trilha sonora da novela Pantanal na antiga TV Manchete que nos encantava com belíssimas paisagens. Mariquinha nunca esteve no Pantanal, não colocou os pés no rio Paraguai e seus afluentes exceto nas viagens fabuladas a partir das imagens e a poética da trama.

Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas vai levando o meu amor

Naquela manhã de domingo a respiração estava ofegante, acelerada. Mariquinha já se despedia desde os últimos dias. Foi quando a neta mais velha segurou na mão dela e foi, devagar e delicadamente, falando algumas palavras que acalmaram o coração cansado. A respiração foi diminuindo, mais e mais, enfraqueceu, o coração entrou num ritmo mais lento, o semblante foi aliviando. A neta cantou para embalar a partida, vibrando nela uma melodia que, aos poucos, transformou a voz afinada e carinhosa da neta num coro de anjos e santos que a receberam no céu. Fim da agonia: a_Deus.

E assim ela se foi, nem de mim se despediu / A Chalana vai sumir na curva lá do rio...

Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas

Atenta à beleza do colorido na paisagem da cidade, Mariquinha nos ensinou um olhar contemplativo especialmente aos ‘ipês’. Imagino o caminho percorrido por ela nesta manhã de setembro: numa chalana navegando águas calmas de um rio estreito cujas margens emolduradas por imensos ipês que soltaram suas flores amarelas, brancas, roxas e rosas numa espécie de tapete florido, flores coloridas sobre as águas para passagem de nossa mãe Maria em sua viagem derradeira.

Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas vai levando meu amor

Mariquinha está no céu. Foi recebida por São João Batista e talvez esteja visitando parentes, as amigas do Círculo Bíblico e as baronesas, amigas da Escola Barão de Piracicaba. Feliz por reencontrar o Juca Jordão, seu Anastácio e a mãe Maria.

Chalana é uma canção de Mário Zan e Arlindo Pinto.

Ivan Rubens

Neto encantado.



para saber das origens da Chalana de Mario Zan, veja a reportagem.



publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 5 de outubro 2021

NÃO ao Marco Temporal

Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link:



Quando os colonizadores chegaram, milhões de indígenas habitavam essas terras cobertas por florestas, rios, árvores, frutas, plantas, bichos, peixes e aves de todas as cores. E gente, gente diversa, distinta entre si e falando diferentes línguas, produzindo e reproduzindo suas culturas. Gente, muita gente. Segundo a FUNAI, mil povos indígenas diferentes, nações indígenas, milhões de pessoas. Exuberância de vida e beleza.

Jês, Kariris, Karajás, Tukanos, Caraíbas, Makus, Nambikwaras, Tupis, Bororós, Guaranis, Kaiowa, Ñandeva, YemiKruia, Yanomá, Waurá, Kamayurá, Iawalapiti, Suyá, Txikão, Txu-Karramãe, Xokren, Xikrin, Krahô, Ramkokamenkrá, Suyá / Curumim chama cunhatã que eu vou contar / Curumim, cunhatã / Cunhatã, curumim

Na canção Curumim Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar, um samba de 1981, Jorge Ben Jor nos provoca a pensar sobre o modo como os povos indígenas foram colocados em um único espaço, sem distinção, reduzidos a uma figura meio caricata. E a construção da unidade nacional: um país, um povo, um idioma. A passagem do diverso, do multi, do pluri para o único, o uno. Um ser humano universal para um Estado nação.

Antes que os homens aqui pisassem / Nas ricas e férteis terraes brazilis / Que eram povoadas e amadas por milhões de índios / Reais donos felizes / Da terra do pau-brasil / Pois todo dia, toda hora, era dia de índio / Mas agora eles só têm um dia / O dia 19 de abril

Pouco sabemos de nossas origens, de nossa ancestralidade, da potência desse encontro de raças que aconteceu aqui nestas terras, indígenas e negritudes, do Brasil original e do continente africano ancestral. Somos indígenas, até mesmo quem diz não ser. Nosso passado é indígena e, penso, indígenas são as possibilidades de futuro para a espécie humana neste planeta. Caso contrário, o fracasso ambiental se anuncia.

Amantes da pureza e da natureza / Eles são de verdade incapazes / De maltratarem as fêmeas / Ou de poluir o rio, o céu e o mar / Protegendo o equilíbrio ecológico / Da terra, fauna e flora / Pois na sua história, o índio / É o exemplo mais puro / Mais perfeito, mais belo / Junto da harmonia da fraternidade / E da alegria / Da alegria de viver / Da alegria de amar

Se ainda resta floresta na Amazônia, devemos AGRADECER aos povos indígenas que, em seu modo de vida, resistem ao modelo de desenvolvimento que destrói a natureza e devasta as formas de vida. Mais terras aos indígenas, esse é o caminho para a vida ser mais bela. Demarcação das Terras Indígenas já!

Mas no entanto agora / O seu canto de guerra / É um choro de uma raça inocente / Que já foi muito contente / Pois antigamente / Todo dia, toda hora, era dia de índio / Todo dia, toda hora, era dia de índio

Curumim é uma palavra de origem tupi: criança pequena; Cunhatã também do tupi: menina moça. Nascimento desse mundo novo: câmara e senado indígenas, supremo indígena, presidência indígena, ministério xamânico. Sonho com um Brasil mais indígena, aldeado e aquilombado, que canta, dança e batuca, mais colorido, mais bonito, alegre e mais vivo.

Indígenas são a terra.

Não ao marco temporal !!!

Ivan Rubens

Publicado no Jornal Cidade de 7 de setembro de 2021




Clique aqui para assistir uma versão com a Baby do Brasil cantando, com o filho Pedro Baby. Aqui a canção está como Dia de Índio.

Regressar é reunir dois lados

disponivel em áudio na bela narração de Greice Moraes


Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link:




Essa frase parece esconder mas, na verdade, revela. As canções escritas por Aldir Blanc nos levam aos bairros e ruas do Rio de Janeiro, seus personagens em suas carioquices. Estou te convidando a pensar numa alegria tipicamente carioca, uma alegria que vem da paisagem de uma cidade que, não à toa, é conhecida como cidade maravilhosa. Uma cidade que, como tantas outras, tem suas contradições, desigualdades, durezas e injustiças. Tem uma beleza singular, uma alegria que se revela num cem número de blocos de carnaval, na praia, na Lapa, na favela, no Aterro, na Bossa, no Samba, no Choro, no Rap, no Charme, no Funk...


Regressar é reunir dois lados / À dor do dia de partir / Com seus fios enredados / Na alegria de sentir / Que a velha mágoa / É moça temporã / Seu belo noivo é o amanhã


Coração do Agreste, canção de Moacyr Luz e Aldir Blanc, conhecida na voz de Fafá de Belém para protagonista da novela Tieta do Agreste (1989-1990), não fala exatamente disso. Mas fala. Fala de uma ligação, de linhas rompidas, de fios enredados. Uma espécie de ligação (a)temporal. Fala de sentimentos adormecidos e que retornam, que emergem inesperadamente. A psicanalista Suely Rolnik diria das marcas subjetivas que vibram. Aldir talvez esteja falando de um tempo aión, compreendido como experiência, um tempo fora do tempo, alforriado da tirania de Chronos


Eu voltei pra juntar pedaços / De tanta coisa que passei / Da infância abriu-se o laço / Nas mãos do homem que eu amei / O anzol dessa paixão me machucou / Hoje sou peixe / E sou meu próprio pescador


Sinto que a força da escrita de Aldir Blanc vem da sua infância em Vila Isabel. Uma infância não como a parte inicial da sua vida mas compreendida como experiência. Uma infância viva nele independentemente da idade. 


Uma canção que se escuta muitas vezes produz efeitos no ouvinte. Ouvir Coração do Agreste é procurar por si mesmo, se encontrar num trecho e se perder noutro. Essa deriva dispara sentidos, sentidos outros, novos ou repetidos, retornando à canção vez por outra. E seguir compondo.


Rio, voltei no curso / Revi o meu percurso / Me perdi no leste / E a alma renasceu / Com flores de algodão / No coração do Agreste / Quando eu morava aqui / Olhava o mar azul / No afã de ir e vir


Rio pode ser a cidade do Rio de Janeiro, terra de Blanc e de Luz. Mas pode também ser um curso d’água qualquer, afluente de uma bacia qualquer. Uma vida em fluxo, uma deriva, movimento de germinar, brotar, desabrochar. Uma espécie de nascimento, um certo vir ao mundo como disse a filósofa Hannah Arendt. Tornar-se presença na emergência de uma obra. Esse ir e vir, esse movimento que só termina com a morte. Talvez nem com a morte porque ficamos vibrando, nascendo, gestando dentro daqueles que ficam, como Aldir fica em nós por meio de sua obra. A obra imortaliza seu criador.


Ah fiz de uma saudade / A felicidade / Pra voltar aqui


Ivan Rubens Dário Jr


publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 9 de agosto de 2021







eu e ela: viela

eu visitei um bairro residencial
ao lado de uma área industrial
que mal há?

lá havia uma vila
uma não, muitas
eu estava com ela

e lá a vi
e lá vinha ela
caminhando na viela

e eu vi
eu a vi
menina linda caminhando na viela

vi paredes sujas
vi gente do povo
imaginei cenas novas
novos cenários

pelas fotografias eu também vi
imagens que congelam cenas reais
de gente real
gente do povo que constrói lugares

maiores
menores
altares

nas imagens congeladas vi temperaturas
comidas quentes
temperos quentes

vi gente de trança
gente que transa
se lança 
entrelaça

e pinta com cores vivas
deixa marcas no muro
aquilo que era monocromático ganha nova cromatologia
gente que cria

vi grafites
grafiteiros
gente por inteiro colorindo a viela

lugares de passagem transformando-se em lugares de paragem
para conversas
para conquistas

meninos eu vi
meninas eu vi
dentre tantas, vi tranças
emoldurando sorrisos
derramando alegria
estimulando poesias

sim, eu vi
viela
com ela
vi ela
a vi
viva

Em mim a embarcação





Em mim a embarcação             (Rabicho Luís e Ivan Rubens)

Deu-me o tempo a paciência
Feita em mim a embarcação
Sobre o mar da existência
Vim remando da ilusão
De um tempo à deriva aprendi
Que o mar arrebenta e passa
E o leme é de quem resistir
Quando a solidão disfarça
Navegante eu sei que sou
E espero amansar a maré
Confiante que o amor
Ancore seguro onde a vida der pé
Quero uma nova emoção
Como se eu fosse um marujo aprendiz
E um novo amor embarcando
No meu coração na rota mais feliz
Com as marés sempre tranquilas
E os bons ventos a favor
Singrando sonhos e aventuras
Velejando sem temor
E o amor comandando a proa
E uma nova tripulação
Sem plano, sem hora
Com outras histórias
Viva em mim a embarcação


Pessoa e pessoas


Disponível no podiquesti Andarilhagens no spotify



O poeta Fernando Pessoa nasceu em Lisboa no ano de 1888. Foi educado numa escola católica irlandesa na África do Sul. Pessoa não era apenas uma pessoa, ele era muitas pessoas. Para escrever seus poemas ele ia além da criação de personagens. Imagine que Fernando Pessoa criava um outro Pessoa, e outro e outros, criava outros poetas. À medida que criava outro poeta, ele fazia-se outra pessoa. Pessoa fazia mais: ele criava heterônimos, ou seja, outro nome, outros autores, gente com nascimento, cultura, personalidade, singularidades, ele criava toda uma biografia e isso sustentava cada heterônimo. Assim, Fernando Pessoa diluiu a fronteira entre real e imaginário. Vejamos três heterônimos de Fernando Pessoa:

Ricardo Reis nasceu na cidade do Porto em 1887. Pessoa imaginou o poeta em 1913 quando sentia vontade de escrever poemas pagãos (Reis até falava palavrões). Estudou num colégio de jesuítas, formou-se em medicina e, por ser monárquico, expatriou-se espontaneamente em 1919 e viveu no Brasil.

Álvaro de Campos nasceu na cidade de Tavira ou Lisboa em 13 ou 15 de outubro de 1890. É considerado o alter ego do criador Fernando Pessoa. Morreu no ano de 1935.

Alberto Caeiro é uma espécie de mestre ingênuo de Álvaro de Campos e de Ricardo Reis e também de Fernando Pessoa. Detalhe: Caeiro teve apenas instrução primária. Caeiro escreveu o poema Guardador de Rebanhos. Veja um trecho:

Sou um guardador de rebanhos. / O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos são todos sensações. / Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca. / Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Fernando Pessoa, ops… Alberto Caeiro define pensamento: pensamentos são sensações. E ele nos dá uma imagem: “pensar uma flor é vê-la e cheirá-la e comer um fruto é saber-lhe o sentido”. Ele sugere que pensar não é um ato apenas da cabeça, não é mecânico. Pensar é uma experiência de corpo inteiro. Caeiro pensa com os olhos, ouvidos, mãos e pés, nariz e boca. Pensar é, assim, movimentar todos os sentidos: visão e audição, tato, olfato e paladar. É saber-lhe o sentido, palavra que pode ser compreendida como direção ou como o passado do verbo sentir, o já sentido. Pensar é, disse minha mãe, puro movimento: “é feito uma dança”. Olha que imagem bonita ela nos deu: pensamento movimento. O poema continua:

Por isso quando num dia de calor / Me sinto triste de gozá-lo tanto, / E me deito ao comprido na erva, / E fecho os olhos quentes, / Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz.

Saber a verdade é estar ao sol, em contato com a terra. E tem um detalhe no mínimo curioso: ele fecha os olhos. E fechando os olhos o poeta nos convida a olhar para dentro. Mas olhar para dentro à procura da verdade? Sim, porque a verdade está fora, a verdade está no mundo real, mas a verdade também está dentro de cada um(a) de nós. Olhar atentamente para a realidade do mundo e para dentro do ser é buscar a verdade e ser felicidade.

Ivan Rubens Dário Jr

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 12 de julho de 2021





EU MANGUE

EUGMAN, que prefiro chamar de EU MANGUE, é um estudo sobre o Mangue em Trancoso.

Depois de várias idas ao mangue em Trancoso/BA, vários estudos, músicas e conversas... experimentamos o mangue como gente, como peixes e como caranguejos. Preocupados com a tensão turismo x preservação, estudantes decidiram dizer alguma coisa para a cidade. E disseram... veja que belezura. Veja também o manifesto Caranguejos com cérebro, do movimento Mangue Beat.




disponível no canal da Associação Despertar Trancoso. https://www.youtube.com/channel/UC5CztHvUlJtmn4TEmKmihzw




Leia a seguir o manifesto "Caranguejos com cérebro", escrito em julho de 1992 pelo jornalista e músico pernambucano Fred Zero Quatro, fundador da banda Mundo Livre S/A.

 

Mangue, o conceito.

Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo. 

 

Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.

Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown, a cidade

A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.

Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.

Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.

Mangue, a cena

Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.

Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.

Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.

Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown. 



Movimento breve

Movimento Breve (voz e violão Nuno Moraes)

ouça o texto na voz de Nuno Moraes

Dois amigos trocando ideias: “estou aqui com uma melodia na cabeça mas não tem palavra”, e envia um arquivo de áudio com solfejo e um cuidadoso dedilhado. São breves movimentos da mão direita acariciando cordas, e um bailado suave da mão esquerda no braço do violão. “O que você está pensando?”, pergunta o ouvinte, dedicado ouvinte. A resposta é direta: “se deixe levar pela música”.

O aprendiz de letrista passa a ouvir atentamente a melodia. Ela é delicada, doce e singela. Coloca a atenção no solfejo do amigo, esse sim, artista das melodias, dos graves e agudos, da arte de criar, dar ao mundo algo novo, de fazer cantar uma alegria imensa cujas raízes estão fincadas na terra da beleza. Não de qualquer beleza mas da estética das ruas, da estética mesma da vida comum. Essa beleza da casa, do dia a dia, da criança esperada, das relações comezinhas, da mesa de bar, das esquinas e encruzilhadas. E o aprendiz, aceitando o movimento breve da melodia, continua ouvindo. Ele sabe que não sabe fazer então, só há uma saída: inventar. Sim, inventar um jeito, nem melhor e nem pior, mas um jeito possível. Então, surgiram os primeiros versos:


QUANDO FOR PARTIR / LEVE NO OLHAR / LIVROS / DISCOS / UM QUADRO PRA LEMBRAR / DE ONDE VOCÊ VEM / FLOR ALFAZEMA. / PRA VOCÊ SORRIR / AO TE VER CHEGAR / FAÇO / CAFÉ. / VOU TE PERFUMAR / VASO DE ALECRIM / VIM PRO TEU POMAR.


Diante das sutilezas da melodia, o já feito precisa ser esquecido abrindo espaço para uma nova tentativa. Pode parecer estranho e é: esquecer o já feito para dar espaço ao ser feito. E tudo começa novamente: escuta, escuta, escuta...

A temperatura começa a subir, a tensão aumenta e a dúvida aparece. Seria capaz de fazer? Olha para a palavra ‘composição’ e pensa: tem ‘posição’, tem ‘si’ e tem ‘com’. Tem ‘posição’ ‘com’. A palavra composição sugere uma espécie de posição que se assume não por um mero desejo individual mas que se assume na tensão do encontro com a diferença. Composição deriva do verbo compor. Escrever é verbo, escrever é uma ação. É o ato de pôr palavra com palavra, palavras na melodia. A deriva meio tresloucada reforça a presença de uma pessoa que sempre esteve ali na imaginação, uma pessoa querida que aparece em cenários. São paisagens que aparecem e desaparecem. São paisagens que aparecem apenas para quem está criando e, escrevendo, elas podem ser reais também na imaginação que for tocada pela canção. 


NO TEU MOVIMENTO BREVE / SOPRA UM VENTO / LEVE NAS PEGADAS / QUE A ONDA APAGA / CRIANÇA NA AREIA / VIRANDO SEREIA / VIDA NA BEIRA DO MAR


Neste caso, é escrever aquilo que não se sabe. É uma espécie de vida que, rompendo a casca do ovo, nasce e vai para o mundo.


QUANDO ENTARDECER / HORA DE VOLTAR / O HOMEM QUE TE AMA / ESTARÁ / ESPERANDO POR VOCÊ LÁ / SORRINDO POR TE VER / NO AVARANDAR. / CHORO DE CRIANÇA / UM RAIO DE IANSÃ / LIVROS NA CADEIRA / CHUVA NA ROSEIRA / FRESTA DA JANELA / LUNA CASA DELA / VIDA QUER ME NAMORAR.


Movimento breve é uma canção de Nuno Moraes e Ivan Rubens.


publicado no Jornal Cidade de Rio Claro dia 15 junho 2021

Movimento breve





MOVIMENTO BREVE
(Nuno Moraes e Ivan Rubens)

QUANDO FOR PARTIR
LEVE NO OLHAR
LIVROS
DISCOS
QUADRO PRA LEMBRAR
DE ONDE VOCÊ VEM
FLOR AL_FA_ZE_MA

PRA VOCÊ SORRIR
AO TE VER CHEGAR
FAÇO
CAFÉ.
VOU TE PERFUMAR
VASO DE ALECRIM
VIM PRO TEU POMAR

NO TEU MOVIMENTO BREVE
SOPRA UM VENTO
LEVE NAS PEGADAS
QUE A ONDA APAGA
CRIANÇA NA AREIA
VIRANDO SEREIA
VIDA NA BEIRA DO MAR

QUANDO ENTARDECER
HORA DE VOLTAR
O HOMEM QUE TE AMA
ESTARÁ
ESPERANDO POR VOCÊ
SORRINDO POR TE VER LÁ
NO AVA_RAN_DAR

CHORO DE CRIANÇA
UM RAIO DE IANSÃ
LIVROS NA CADEIRA
CHUVA NA ROSEIRA
FRESTA DA JANELA
LUNA CASA DELA
VIDA QUER ME NAMORAR

A música Yanomami



A gente ouve muita coisa... O tempo todo tem sons, tem palavras, barulhos e até melodias atingindo nossos ouvidos. Tem também ruído: uma televisão ligada, um rádio, um fone de ouvido em volume altíssimo ou mesmo um celular barulhento e sem o fone de ouvido. Então você está distraído e é atingido pelo ruído de um áudio no zap que agride seus ouvidos e você nem imagina de onde vem. Quero aqui marcar uma distinção didática: estou chamando de ruído uma certa poluição sonora, um determinado som que nos atinge mas não significa nada; vou chamar de música aquele som que interessa, que pede nossa atenção, que mexe, aquele som que convida, convoca uma escuta atenta.

No dicionário etimológico, música vem do grego mousikḗ, associado a moûsa, em referência às personagens femininas da mitologia grega. As musas eram habilidosas em criar belos sons. Para os gregos a música era uma téchne, uma técnica não focada na razão ou logos, mas sim numa manifestação de entendimento. Esta atividade artística era entendida como uma mousiké téchne, que posteriormente ficou conhecida como "ars musica" na civilização romana.


Pesquisas arqueológicas encontraram flautas e outros instrumentos fabricados de osso ou madeira que se remetem há 40.000 anos. Apesar disso, a música como manifestação cultural teve início na Grécia Antiga mais ou menos como a conhecemos hoje. Assim, quando as palavras não podem transmitir todas as ideias, a expressão musical procura comunicar aquilo que não cabe dentro da palavra. Bonito, não?

Aqui no nosso texto, em oposição à música está o ruído. Um exemplo de ruído que atinge nossos ouvidos está dentro da palavra negacionismo. Mas o que significa negacionismo? No Aurélio, dicionário da língua portuguesa, negação significa ato de negar, falta de vocação, falta de aptidão, ausência. Significa também rejeição, recusa. Para a filósofa brasileira Marilena Chauí, significa ‘mentira!’. Explico: imagine que você vai comer aquela bolacha recheada mas não sabe qual é o recheio que ela tem. Então você abre a bolacha para ver o recheio que está dentro. Olha, cheira e conclui que o recheio é morango. A exemplo da bolacha, dentro da palavra também tem uma espécie de recheio. O ‘recheio’ da palavra é o sentido que ela carrega. Mas o sentido das palavras varia de acordo com o pensamento de quem fala ou escreve. 


Quando a professora Marilena Chauí abre a bolacha (ops), abre a palavra ‘negacionismo’ ela encontra um recheio ruim que ela dá o nome de ‘mentira’, ou seja, a capacidade de mudar os fatos. Ela também encontra ‘cinismo’. Cinismo é a recusa da distinção entre a verdade e a mentira. Para o filósofo Adorno, ‘cinismo’ é tornar irrelevante a distinção entre verdade e mentira. Dizer que os indígenas são os responsáveis pelo desmatamento da amazônica é de um cinismo brutal. Isso é mentira!



Já as palavras Yanomami, para dizer um povo indígena, tocam nossos ouvidos como a música mais bela.



Ivan Rubens

professor


publicado no Jornal Cidade em 18 de maio de 2021

3/4 de aula

Leia o texto 3/4 de aula no link abaixo.

3-4-de-aula





ele está publicado no blog da Escola de Ativismo.












3/4 DE AULA



Por Luciana Ferreira e Ivan Rubens Dário Jr

Se você se animar nesta leitura, faça-a como viajante. Não estamos falando daquele/a viajante que compra um pacote de turismo. Estamos nos referindo a um/a viajante movido/a por uma curiosidade, por um desejo de encontrar pessoas, lugares, culturas, movido/a por um desejo de encontros e, neste movimento, procura, busca, encontra-se mesmo que aos poucos, fragmentos, pedaços, porções. Movido/a, enfim, por este desejo de encontros.

É neste movimento que estamos pensando antes com o corpo que com a cabeça. Por isso, atentos/as ao mundo que nos rodeia, nos convoca o olhar e escutar as pessoas, pois o mundo é povoado de pessoas que não são exatamente assim como você e eu. O mundo é povoado por pessoas outras. Neste movimento de vida que passa por ver, ouvir, encontrar, agir, estudar, sentir e pensar, escrevemos este texto.

Vivemos uma situação de dores, perdas, tantas dificuldades que as palavras faltam, fogem, nos escapam. Este momento é complexo:

1) o pior presidente de todos os tempos governa o Brasil;

2) um vírus letal está no mundo.

Coincidência desastrosa que arrasta brasileiros e brasileiras para a morte. A cada dia os números de infecções e mortes aumenta. Publicamos este texto no final de abril de 2021. Completamos um ano de isolamento e vivemos a chamada segunda onda da pandemia. Estranho… saímos da primeira?

Em condições normais os meses de abril colocam em muitas escolas todo um trabalho de preparação para o feriado de Páscoa. Crianças alvoroçadas com ovos, trabalhos com este tema, a expectativa para mais um feriado e o merecido descanso com o feriado. Mas neste ano foi diferente: o sentido de ressurreição, as cerimônias – missas, cultos, almoço pascal com ares de encontro festivo, a partilha dos ovos, grande parte disso foi substituído pelo isolamento social. “Fique em Casa” deu o tom deste final da quaresma. Toda a lógica da ressurreição, do renascimento, da nova vida possível numa mesma vida foi substituída pelo isolamento social. Cuidar de si e cuidar do outro nunca foi tão necessário para seguirmos (enquanto humanos) no mundo e com o mundo.

Entramos no segundo ano de isolamento, encontros em espaços fechados estão proibidos. Mas aula é encontro!!!

Que tempo é esse?

Como está isso?

Como lidar com essa contradição?

A educação escolar está ameaçada de paralisia?

Como professores, estudantes, famílias estão lidando com esta situação?

Fechadas/os desde o final de fevereiro/2020, encontramos Brasil afora muitas realidades, a pandemia evidencia a cada dia a desigualdade social, econômica. E agora está ainda mais evidente a desigualdade digital. É constitutivo da escola acolher as diferenças mas, sem encontrar as diferenças, sem vê-las, sem senti-las, resta ignorá-las? Estude quem conseguir é a revelação de um lamentável salve-se quem puder. São muitas as revelações. Quem está atento viu (e vê) de um tudo: aulas por canais de televisão; Aulas pela internet via plataformas pagas, não pagas; Aulas por materiais impressos distribuídos a cada estudante; Aulas dadas pelos pais; Aulas dadas pelos irmãos mais velhos; Aulas mediatizadas pelas telas, pelo celular; Falta de Aulas por falta de telas; Abandono de aulas, algo que aumentou muito.

Um estudo publicado em janeiro de 2021 pela Unicef aponta que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes tiveram seu direito à educação negado em 2020 no Brasil. Outros 4.125.429 afirmaram frequentar a escola sem acessar atividades escolares. Até mesmo famílias que conseguem manter uma rotina de estudos com as crianças e possuem internet em casa estão enfrentando dificuldades em manter esse modelo de estudos onde a interação se dá pelas telas. E como nosso interesse com este texto é pensar a aula, perguntamos:

Isso é aula?

O que é uma aula?

Na tentativa de encontrar uma resposta mesmo que provisória, recorremos a algumas pessoas que, cada um à sua maneira, pensaram a respeito disso e desta maneira nos ajudarão empurrando nosso pensamento a pensar mais. O abecedário do filósofo Gilles Deleuze começa com a palavra AULA. Diz o filósofo:





Para mim uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula cada grupo ou estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos… As pessoas tem que esperar… Obviamente tem alguém meio adormecido, por que ele acorda misteriosamente no momento em que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a alguém, o assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção, é tanto emoção quanto inteligência, sem emoção não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente. É por isso que um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento do centro de interesse que pulam de um lado para o outro. Isso forma uma espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura.Gilles Deleuze


A professora Karen Rechia e o professor Jorge Larrosa, ela brasileira e ele catalão, também pensam a respeito de AULA. Retiramos o seguinte fragmento de texto do livro P de Professor:


a aula constitui o aluno em aluno (e idealmente em estudante) e o professor em professor. Por isso seu limite é (a porta) tão importante. É ao entrar na sala de aula que o aluno se converte em aluno e o professor se converte em professor. O fato de que a aula tenha algo de solene (como corresponde ao espaço público) é muito importante para isso. Sinto esta transformação, já que ao entrar na sala de aula ganho certa gravidade, algo que exige de mim atenção, uma maneira de falar com cuidado (…) A sala de aula é também uma cápsula atencional muito interessante distinta de qualquer outra (…) eu acredito que na sala de aula não se pode estar “como em casa” (…) é preciso fazer com que a sala de aula seja sentida como um espaço separado, distinto, com suas próprias normas e rituais, um espaço exigente.Trecho do livro "P de Professor"


Vimos acima dois fragmentos de pensamentos a respeito da aula no campo da filosofia e da educação. Veremos a seguir dois fragmentos de aula nas artes. Encontramos no poema denominado Aprendimentos um fragmento do pensamento do poeta mato-grossense Manoel de Barros. Diz o poeta das coisas simples:



(…) Estudara nos livros demais.

Porém aprendia melhor no ver,

no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar

Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.

Se admirava de como um grilo sozinho, um pequeno

grilo podia desmontar os silêncios de uma noite!

Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles, esse pessoal.

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova

(…) e que a beleza se explica melhor por não haver razão nenhuma nela.

O que mais sei sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.

Manoel de Barros


Engana-se quem acredita que São Paulo tenha sido algum dia o túmulo do samba. Nada disso. Geraldo Filme é um sambista popular nascido em São João da Boa Vista, interior do estado de São Paulo, fundador da escola de samba paulistana Vai-Vai. Talvez você não o conheça pelo nome mas o conheça assim:

Quem nunca viu o samba amanhecer / Vai no Bixiga pra ver / Vai no Bixiga pra ver (…)

Na canção intitulada Garoto de Pobre, seu Geraldo canta assim:




Garoto de pobre / Só pode estudar / Em escola de samba / Ou ficar pelas ruas / Jogado ao léu / Implorando a bondade dos homens / Aguardando a justiça do céu / Seu lápis é sua baqueta / Que bate o seu tamborim / Ninguém olha este coitado / Senhor qual será o seu fim?

Na escola de samba da vila / é onde ele vai estudar / Ensaia o ano inteiro / Tem provas no carnaval / Ele desce dos morros / Ele vem das vilas / E chega a cidade / Alegra os turistas / Recebe os aplausos da sociedade / Se criar novos passos / Criar nova ginga / Ou compor um samba / Está aprovado, recebe o garoto / O diploma de bamba

Na escola de samba / Aprende a rir, / Aprende a sofrer, / Aprende a chorar / Mas não sabe ler / Doutor qual o seu destino será?Geraldo Filme



Depois de encontrar estes pensamentos acerca de AULA e ESCOLA, depois de ler as linhas acima, vamos tecer juntos essas linhas. Gilles Deleuze apresenta que aula é colocar a matéria pensamento em movimento. Larrosa e Karen colocam a atenção no sentido constitutivo de ser estudante e ser professor. Manoel de Barros mostra uma aula com o mundo, com a natureza, em contato e contágio. Geraldo Filme coloca a questão: quem pode estudar? Para ele, garoto de pobre só pode estudar em escola de samba, criar passos e gingas para enfrentar as injustiças que não foram criadas por ele, por um modo de vida que não garante as mesmas oportunidades para todos e todas. Quando o baque é muito pesado, sobreviver primeiro. Apenas um corpo vivo pode aprender a ler, aprender a escrever e etc, etc, etc.



E mesmo diante da filosofia, da educação, da poesia e do samba, apesar desses encontros todos, do pensamento, esses encontros agora estão nas telas. É bem verdade que estamos nos acostumando cada vez mais com as telas. As relações humanas estão cada vez mais mediadas, midiatizadas por telas. As telas invadiram nossas vidas já há algum tempo. As casas possuem uma dezena de aparelhos que nos fazem atravessar o mundo em um clique. TV’s, computadores, celulares, estão nos cômodos como se fossem pessoas. Não raro, assumem o lugar das pessoas: tocam, falam, fazem barulho, emitem ruídos, se fazem presentes, preenchem os espaços, limpam o chão. Fazem inclusive uma coisa que algumas pessoas não fazem: escutar. Isso mesmo, esses aparelhos nos escutam, registram e dão retorno. Você já reparou nos anúncios e nas propagandas que aparecem nas suas redes sociais ou seu email gratuito?

Mas se antes eles conviviam com a gente, com o isolamento social tais aparelhos ganharam centralidade: são fonte de informação, companhia, entretenimento, espaço de festa, estudo, música, exercícios…. enfim, tudo! (ou quase tudo)

Aqui estamos situados: a presença destes aparelhos nas casas e nas vidas. A presença desses aparelhos colocados como parentes e convivendo intimamente conosco. A privação dos encontros como consequência do isolamento social. Mas os encontros são constitutivos do espaço escolar… Escola é lugar de encontro!!!

Se faz escola estando em casa? Se faz escola quando os encontros estão limitados às telas? Se faz escola pela internet? Que tipo de encontro é esse?

O que é uma aula?

1/4 de aula



Abril de 2020. Duas casas geminadas, uma grande família. Grande, agitada e barulhenta. Muito entra e sai de gente da casa, colegas, parentes… Tudo silenciado pela pandemia. A casa mudou junto com a mudança na vida, nos ritmos, todo um movimento cessou. Mas naquela manhã algo diferente me atravessou.

6h50, passos arrastam um chinelo. Sobe as escadas e entra lentamente no quarto. Abre a porta, embrulhada em uma coberta, touca na cabeça, caneca de café com leite e um pão nas mãos, despeja tudo isso sobre a mesa, livros e um estojo cheio. Como ela conseguiu carregar tudo isso? Diz: “bom dia” e liga um notebook. A abertura da tela fez entrar no quarto meia dúzia de vozes, meninos reclamando e meninas agitando, falas de insatisfação típicas dos 15 anos de idade: é muito cedo e faz muito frio. Entra também uma voz animada, meio gripada, adulta:

– Bom dia! Bom dia! Vâmo acordar, povo! Quem aí está a fim de dar um mergulho na piscina nesta manhã? Hein?! Muito frio? Então já que ninguém vai mergulhar vou fazer a chamada!

Mas que loucura é essa? Deve estar fazendo uns 5 graus nesta manhã e o cara pergunta quem quer mergulhar na piscina???

Chamada? Um computador quer fazer chamada? Como assim? Seria um sonho desses que acontecem na fronteira do sono e da vigília? Seria um pesadelo? Não adiantou mexer o corpo na cama, não adiantou cobrir a cabeça com o travesseiro…

Chamada??? Sim porque aula deve ser aula. Aula com ou sem presença, tem chamada. Descobri isso e comecei a pensar neste espaço-tempo demarcado dentro da aula, da escola, somente agora, essa coisa de ter seu nome dito em público, nome e sobrenome. No livro “Em defesa da Escola – uma questão pública”, Jan Masschelein e Maarten Simons (2013) comentam a chamada revela o sentido de anonimato da Escola. Na chamada você não é filho do fulano de tal, neto do beltrano, mesmo carregando um sobrenome. Na escola você é o João, a Maria, o Roberto e ponto. Quando o professor ou a professora chama seu nome você responde: presente! Piadas, apelidos, gracinhas costumam aparecer também. Será que a menina vai dizer PRESENTE sem estar presente?




Não foi preciso. Ela não disse nada, nem os seus colegas. O professor foi ditando os nomes presentes a partir das “janelas abertas” na tela dele. E quem disse que eles estavam presentes?

Nenhuma resposta do tipo:

– Presunto!

– Faltei!

– Tô aqui!

– Faltei mas tô levantando a mão!

Nada de brincadeira. Nenhuma voz exceto a do professor que ensinava inglês e falava sobre os ‘genitive cases’.





Fiquei ali, na cama de algum modo participando da aula, sim porque para participar era preciso apenas estar ali com o computador aberto. Câmera fechada. Microfone fechado. A adolescente ali sentada parecia um corpo sem nada, dedicado ao tédio da aula mediada pelo computador.

Levantei, dei um beijo nela e perguntei: “Você tá gostando da aula assim?”

E ela: “Tô achando ótimo! Assim não preciso ver a cara desses moleques!”

Para ela o estudo neste momento fica melhor se separado da convivência. Bom, se Gilles Deleuze estiver correto, esse adormecimento do corpo durante uma aula é parte da aula. Espera-se que o conceito despertador ative o corpo e coloque em movimento a matéria pensamento.

Seria essa uma aula?




2/4 de aula



Da cozinha escutei outras vozes. Pensei: Ah, tem mais alguém fazendo aula. Segui os sons, cheguei ao quarto de outra. Bati na porta, abri devagarinho… achei sinceramente que a encontraria deitada na cama, com computador aberto, meio dormindo, meio acordada, livros jogados, cobertas na cabeça. Para nossa surpresa a mais nova estava sentada à mesa, computador e livros abertos. Olhava firmemente para a tela enquanto encostava a sola do pé direito na nuca. A voz que saia da tela era feminina, escuto a palavra “Revolução”.

Ela desvia o olhar da tela, me olha, e sorri! Solta a perna, estica os braços pedindo um abraço. Vou até ela mais curiosa do que saudosa. Quem estaria ali falando e prendendo a atenção da menina de 12 anos daquela maneira? Uma figura com um gorro verde de tricô, óculos, muito jovem. Livros ao fundo. Falava empolgada sobre a diferença de “Revolta e Revolução”. A pequena diz: “esta é minha professora de História, ela é muito linda né?”

Fiquei ali observando… Não parecia exatamente uma professora. Seria o cenário, cheio de livros, um quadro pintado a spray ao fundo? Seria a desenvoltura dela ao falar para a câmera? A mais nova estava envolvida na aula, dando um jeito de manter o corpo ativo, ela que é puro corpo. Me senti alegre porque se ela estivesse na sala de aula da escola, naquele belo prédio antigo abriga uma escola centenária, lhe seria negado o movimento do corpo, pés nas orelhas, alongamentos necessários para quem pratica ginástica artística. Pode ser até que ela pense mais fortemente se mexendo assim! Pode ser…

Perguntei: “Você tá gostando da aula assim?”

E ela: “Não gosto nem assim, nem do outro jeito, mas aqui do quarto eu posso botar o pé onde eu quiser!”


Suspeitas confirmadas. Jorge Larrosa fala do sentido originário da Escola, seu sentido grego de ‘Scholé’ na perspectiva do ‘tempo livre’. Tempo livre para o estudo, para se afastar do mundo e dedicar-se a compreendê-lo, tempo livre para agir no mundo. Na citação acima, Larrosa e Karen Rechia falam do espaço pedagógico e tempo pedagógico, ambos constituintes da escola e fundamentais para o estudo sobretudo durante a vida escolar. Assim, aula é um espaço tempo onde se estabelecem a figura do professor e a figura do aluno. As carteiras, a sala, a mesa do professor, o quadro, tudo isso é extremamente importante na realização de uma aula, importantes para que a arte de estudar, a arte de observar o mundo e pensa-lo, aconteça.

Então, seria essa uma aula?

Saio do segundo quarto e fecho a porta.


3/4 de aula



Ouço vozes, um bocado de vozes, vozes de criança… Sobressai uma voz mais forte, adulta. Bato e abro a porta devagar. Ela está sentada de costas para a porta, atenta à tela. A tela contém mais de 20 cabecinhas frenéticas. Não acredito no que vejo. Chego mais perto. É isso mesmo: ela está professora. Não são mais as meninas, agora estou observando uma mulher se fazendo professora. Ela olha para todas as carinhas na tela, ela fala com todo mundo ao mesmo tempo, fecha microfones de alguns, abre de outros, explica, chama a atenção para si, sorri, vibra, mostra uma dobradura, diz a página. Cansei só de olhar.

Ela não consegue nem me ver ali ao vivo, no quarto dela. E eu também nem consegui perceber que o companheiro estava ali dormindo na cama ao lado. Pensei: não deve ser uma manhã tranquila para ela.





Se uma me mostra a liberação do tédio e a outra me apresenta a liberação do corpo, se fazendo professora a terceira mostra atenção total aos mais de 20 rostinhos na tela como se apenas com os olhos ela pudesse evitar que caiam, que chorem, como se pudesse garantir que entendam, que aprendam, que acompanhem e etc. Ela reivindica a presença, ela leva muito à sério o que está fazendo. Ela está comprometida com a aula.

Manoel de Barros o poeta das ‘Ignorãças’, das Invenções, nos disse em seus ‘Aprendimentos’ que é preciso pegar, cheirar, sentir, provar… que a beleza está exatamente em não saber para que isso serve.


O esforço dela, e de muitas professoras e professores neste momento, é grande. Mas será que por estas telas existe a experiência que sugere o poeta? As telas fazem a mediação, possibilitam um certo tipo de encontro com hora marcada, assim como na Escola, mas certamente não possibilitam a inteireza dos encontros limitando a experiência humana, limitando a produção dos sentidos, dos atravessamentos, dos afetos, das emoções.

Junho de 2020. As mesmas casas geminadas, a mesma grande família. Tudo igualmente silenciado pela mesma pandemia. A casa já mais adaptada às mudanças na vida impostas pelo isolamento social, adaptada aos novos ritmos, desacelerada. Na tela plana do notebook várias crianças vestidas tipicamente, quartos com bandeirinhas, carinhas pintadas e a professora sorrindo. Uma espécie de diversão se revelava nos gestos, figurinos e cenários. No quarto de aula fundamental II, indiferença. Já no quarto de aula ensino médio, cansaço (cochilou na segunda aula). Mas o surpreendente aconteceu na hora do intervalo. A adolescente voltou para a aula fantasiada e assim passou o dia. Além da festa junina online, queremos mesmo contar o que observamos durante a aula de física.

O jovem professor tocando viola caipira, música bonita, doce. Silêncio da tela plana. O quarto sala de aula foi tomado pelo dedilhado do professor. Depois de tocar e cantar lindamente, falou da canção, da escolha por aquela canção, falou do seu gosto por viola caipira e, sobretudo, falou do caipira. O professor criou uma imagem muito interessante do sujeito caipira em sua simplicidade. Caracterizou, em seu discurso, uma subjetividade caipira na valorização das coisas simples da vida, palavras dele. Falou da vida no campo… A estudante adolescente comentava: “que fofo! adoro essa aula”.

Dilatação dos corpos, propriedade físicas, contração e dilatação… o professor apresentou pinturas do prédio da escola, falou dos pintores e dos artistas, falou das imagens e mostrou detalhes. Piso, paredes, blocos de concreto, separações, espaços vagos a serem preenchidos pelos movimentos dos corpos. Corpos duros como concreto, se movimentam. Talvez seja mais fácil concluir que o ferro e o concreto se movimentam quando o professor movimenta o pensamento dos alunos e das alunas. Seria a cabeça mais dura que o concreto? seria o pensamento mais mole que o cimento?

Como será para elas este ano letivo?

Será que isso é aula?

E quem não tem computador, nem internet, quem não sabe usar essas coisas, tem aula?

E para que aula se ninguém sabe o que será do mundo?

O que será delas?

Neste tempo de tantas incertezas, neste tempo onde as molduras foram rompidas assim como um rio que arrebenta os barrancos onde corre a água, neste tempo de incertezas talvez seja mais interessante nos dedicarmos às perguntas.




Seriam aulas nos 3 quartos? haveria uma aula por inteiro?



Talvez sim, talvez não. Estamos pensando-as como tentativas de aula. Muitos/as alunos e alunas desejam estar com os seus e com as suas nessa maravilhosa viagem movida pela curiosidade, que aponta o olhar, que coloca a atenção nas maravilhas do mundo, que provoca a curiosidade e o desejo de vida e de mundo. Muitos/as crianças e adolescentes que abandonam a escola porque, diante da fome e das necessidades da casa, estudar não lhes era possível. “Garoto de Pobre” só pode estudar em Escola de Samba onde o lápis é a baqueta que bate o tamborim. Onde a criação de novos passos, a criação de novas gingas ou composição de novos samba, aprova e certifica: recebe o diploma de bamba!

Queremos pensar a Escola nesta perspectiva apresentada na sabedoria da cultura popular: escola é buscar um sentido, escola é encontrar um sentido, escola é significar o mundo, modifica-lo. Queremos pensar a Escola como tempo suspenso, quase que afastado de uma certa realidade, para pensar sobre ela. E, assim, com ideias renovadas, agir. Escola é experiência com força de arrasto. Assim, as tentativas de escola estão em muitos lugares, de muitos jeitos, nos esforços seja por chamada com ou sem vídeo, com jogos e músicas e criações para que o encontro (mesmo que à distância) aconteça.

Observar os 3/4 de aula foi estranho. Estranho para quem se produz educador na dureza da vida e, ao mesmo tempo, se faz estudante na pesquisa. Lutamos contra as tentativas golpistas de Educação à Distância como pregam algumas correntes. Mas após um ano trancados em casa, nos perguntamos como estaríamos sem estas tentativas de encontro mesmo que mediados por telas?

Se estamos cercados de genocidas, genocídios, vermes e vírus, que a escola seja um espaço de refúgio, um espaço para pensar, um espaço para resistirmos à negação do pensamento. Falamos de uma escola que se materializa em um espaço (hoje vazio de encontros) e num tempo, um tempo livre para que o pensamento possa se colocar à deriva em horizontes de criação. Talvez encontremos o quarto de aula para somar 4/4: a inteireza de uma aula. Afastados da realidade dura e por vezes insuportável, que este espaço-tempo não se deixe capturar neurótica produtividade excessiva imposta pelo mercado.

Façamos hackeamentos, nos distanciando, mesmo que por algumas míseras horas, para encontrar potência: viver é mais que sobreviver.

Façamos hackeamentos para pairar, para voar, para estar acima, para buscar o alto, para alcançar o céu antes que ele quede.

Luciana Ferreira é pedagoga e educadora popular, doutoranda em Educação pela UNESP-Rio Claro e integra o coletivo da Escola de Ativismo.

Ivan Rubens Dário Jr é geógrafo, educador e amigo da Escola de Ativismo. Autor de Pedagogias da Cidade: corpos e movimento.

Uma Marcha Fúnebre


Quem acompanha esta coluna sabe que costumo escrever com canções. Sempre uma música que esteja tocando (e me tocando) no momento da escrita. Nosso fundo musical desta vez é a Marcha Fúnebre de Chopin.

Guido Palomba, um dos mais respeitados psiquiatras forenses do Brasil, alerta para os riscos de um presidente que não mostra sinais de compaixão pelo povo. Guido é reconhecido pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, pela OAB, Academia de Polícia de SP, pela Polícia Militar e pela Associação Paulista de Medicina. O trabalho de um psiquiatra forense passa inclusive por decifrar os distúrbios de personalidade em tempos tensos. Estamos vivendo um tempo tenso: Pandemia e crise sanitária. Num artigo publicado em 18/março/21 na Folha de SP, o psiquiatra apontou sinais de desvio de personalidade encontrados no comportamento de Jair Bolsonaro.

Ególatras, estão sempre pensando em si mesmos, são indivíduos que não sentem remorso.

Psicopatas (condutopatas) são manipuladores: “são tidos como pessoas toscas, capazes de adotar determinados comportamentos e não percebem aquilo que estão fazendo de errado”. Veja então alguns sinais na conduta do Jair:

Falta compaixão: “Chega de frescura e mimi, vão ficar chorando até quando?”

Sobre frieza: “Não sou coveiro!”

Incorrigíveis e agressivos: “É uma patifaria. Cala a boca, eu não te perguntei nada”.

Vaidade exagerada: “Pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus seria, quando muito acometido de uma gripezinha”.

Provocativos e autoritários: “Quem manda sou eu. Eu tenho poder de veto. Não serei um presidente banana.”

Diante dos comportamentos do Jair, o psiquiatra aponta uma hipótese diagnóstica. E vê um grande risco quando um condutopata comanda uma nação: “se acha o grande poderoso e aí que vem a tirania... Essas pessoas nunca deveriam ter poder mas, quando o tem é sempre uma lástima”, afirma Palomba.

Sei que é muito difícil falar disso numa cidade onde o atual presidente e maior responsável pela crise sanitária que estamos vivendo, por omissão seja junto ao ministério da Saúde e sua aposta na imunidade de rebanho, seja no mal exemplo que diariamente oferece ao povo brasileiro, seja pela recomendação de tratamentos ineficientes, seja na desinformação do povo, seja no seu negacionismo nefasto, seja na negação da vacina, (e tem tanto ‘seja’ que até cansei de escrever)…. então, falar disso numa cidade onde 79,05% do eleitorado confiou seu voto a ele é delicado. Então, leia este texto e pense nos argumentos do Guido Palomba com calma. Não se trata de a favor ou contra, não é isso. Não se trata de um FLA x FLU ou um São Paulo x Corinthians. Não se trata de enfiar verdades goela abaixo de ninguém. O que pretendo com este texto é te convidar a pensar.

Marchamos para 400 mil vidas desperdiçadas e famílias a quem foi negado o ritual de despedida fundamental na elaboração do luto. O capitão Bolsonaro comanda esta Marcha Fúnebre!

Ivan Rubens
Geógrafo



publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 20 de abril de 2021

Desenredo


leia o texto ouvindo a canção em coro. basta clicar no link abaixo 

Numa partida de futebol em 1976, Dori Caymmi se contundiu. “Cheguei a operar. Fiquei deprimido e senti raiva do mundo”. Seu pai, Dorival Caymmi, disse: “Coloquem o violão perto do Dori que ele logo se acalma”.

A recuperação foi longa. Na cama, Dori dedilhava o violão. Foram chegando as imagens da Zona da Mata mineira e a saudade das Minas Gerais. Lembrou dos amigos do colégio, professoras/es, lembrou da cidade. “Deu aquela nostalgia, os primeiros acordes foram chegando. Eu estava lendo Guimarães Rosa e me lembrei de minha mãe cantando uma canção que me remetia aos hinos de Ouro Preto”. E surgiu o refrão: Ê, Minas / Ê, Minas / É hora de partir / Eu vou / Vou-me embora pra bem longe. Dori se considera ⅓ carioca, ⅓ baiano e ⅓ mineiro: nascido no Rio de Janeiro, filho do soteropolitano Dorival Caymmi, filho de Stella Maris, mineira do interior.

Recuperado, Dori Caymmi mostrou a melodia e o refrão para o amigo e poeta Paulo César Pinheiro que escreveu algumas linhas. “À medida que fui escrevendo, imagens mineiras passavam na minha cabeça. Lugares como Sabará, São João del-Rei. Tudo surgia como imagens: ‘Por toda a terra que passo/ Me espanta tudo o que vejo’...

Por toda terra que passo / Me espanta tudo o que vejo / A morte tece seu fio / De vida feita ao avesso. / O olhar que prende anda solto / O olhar que solta anda preso / Mas quando eu chego / Eu me enredo / Nas tramas do teu desejo.

O mundo todo marcado / A ferro, fogo e desprezo / A vida é o fio do tempo

A morte é o fim do novelo. / O olhar que assusta / Anda morto / O olhar que avisa / Anda aceso. / Mas quando eu chego / Eu me perco / Nas tramas do teu segredo.

Pinheiro aprendeu também a escrever a partir dessas imagens que apareciam na sua cabeça. “Conheci Minas dos livros de Guimarães. Quando me casei com a Clara, desbravamos os interiores de Minas Gerais”. Pinheiro foi casado com a cantora mineira Clara Nunes.

Ê, Minas / Ê, Minas / É hora de partir / Eu vou / Vou-me embora pra bem longe.

Composição: Dori se recompondo de um trauma, re_compondo consigo mesmo, se procurando no território e na própria história, compondo e recompondo no espaço e no tempo, compondo com o violão, com as imagens e as paisagens; Ao mesmo tempo em que Pinheiro está compondo, está tecendo suas próprias linhas. As linhas de vida se encontram, as linhas vão tecendo. Os artistas usam a palavra ENREDO para dizer que a vida é tecer as redes, ou seja, enredar. A imagem que me ocorre é o corpo de uma criança indígena acolhido numa rede, seguro, tranquilo e calmo, repousando e balançando na rede. A canção termina assim:

A cera da vela queimando / O homem fazendo o seu preço / A morte que a vida anda armando / A vida que a morte anda tendo. / O olhar mais fraco anda afoito / O olhar mais forte, indefeso / Mas quando eu chego / Eu me enrosco / Nas cordas do teu cabelo.

Desenredo dá ideia de desembaraço, o desenlace de uma rede. “Inclusive, digo isso como se estivesse desembaraçando o fio do tempo, à medida que ia passando por lugares centenários de MG”, afirma o poeta.

Desenredo é uma canção de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro.


Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição impressa de 23 de março de 2021







Mascarada


Aconteceu no Rio de Janeiro. Um sambista muito gente boa brincava o carnaval no “Bloco das Piranhas”. Neste bloco, como era comum na década de 1950, os homens desfilavam vestidos de mulher. Pois bem, o sambista muito gente boa encontrou uma moça no bloco. A moça também encontrou o sambista. Ambos se gostaram, não deu outra: romance! O sambista não foi mais visto naquele carnaval. Dias depois ele revelou a um amigo, também sambista, que a moça não tirou a máscara. Ele, portanto, não conseguiria identificar o rosto daquela mulher.

No ano seguinte a história se repetiu. O sambista gente boa já sabia onde encontrar a Mascarada. E o romance emergiu... mas o mistério se manteve porque ela novamente não tirou a máscara. Apenas no terceiro ano a mulher revelou seu rosto. Apenas no terceiro carnaval ela se permitiu tirar a máscara.

Talvez você não acredite nessa história. Talvez você pense assim: mais uma história de carnaval. Olha, vou te dizer que eu acredito. Verdade ou mentira é um detalhe menor. Não se trata disso. Vamos colocar a questão de um jeito mais bonito: realidade ou invenção? O poeta mato-grossense Manoel de Barros diria memórias inventadas ou 10% é verdade e 90% é invenção! Mas, se considerarmos invenção como criação humana, não dá para dizer que uma história inventada é mentira.

Tem um samba que diz assim: O corpo, a morte leva / A voz some na brisa / A dor sobre pra’as trevas / O nome a obra imortaliza. Ou seja, a obra imortaliza o artista, a criação torna a vida do criador mais longa do que a sua carne. Aliás, se você olhar direitinho, dentro da palavra ‘carnaval’ tem a palavra ‘carne’.

Então, o sambista gente boa de que falamos é Zé Keti. Um dia, Zé Keti apareceu acompanhado de “uma bonita senhora” e disse: “Elton, essa aqui é a mascarada”. Mais ou menos assim nasceu o samba canção Mascarada, de Elton Medeiros e Zé Keti.

Vejo agora esse seu lindo olhar / Olhar que eu sonhei / E sonhei conquistar / E que um dia afinal conquistei, enfim / Findou-se o carnaval / E só nos carnavais / Encontrava-te sem / Encontrar esse seu lindo olhar, porque / O poeta era eu / Cujas rimas eram compostas / Na esperança de que / Tirasses essa máscara / Que sempre me fez mal / Mal que findou só / Depois do carnaval.

Neste 2021 comemoramos o centenário de Zé Keti. Mais do que nunca e por razões bem particulares, Mascarada faz-se atual. A mulher mascarada que inspirou a canção se mostraria prudente na pandemia. Porque, apesar dos pesares, apesar da pandemia, hoje é terça-feira de carnaval. Apesar de você, Jair, apesar da sua ignorância e truculência, apesar do rio de leite condensado e dos mares de lama onde naufraga seu governo incompetente, apesar da cerveja e do whisky, do bacalhau e da picanha de alta patente, apesar de você amanhã há de ser outro dia. E as ruas estarão cheias de gente colorida, alegre e cheia de vida: Unidos do Fora Bozonaro, nota 1000.

Faça como a Mascarada: use máscara!

Ivan Rubens Dário Jr


publicado no jornal Cidade de Rio Claro em 22 de março de 2021

Mascarada, Zé Keti

Mascarada, com Elton Medeiros


Uma Travessia


Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver / Forte eu sou mas não tem jeito / Hoje eu tenho que chorar / Minha casa não é minha / E nem é meu este lugar / Estou só e não resisto / Muito tenho pra falar

A pessoa se foi. Teria acabado o amor? Teria nascido um novo amor? um laço está desfazendo... O dia se fez noite, o sol se fez lua, toda cor desbotou, empalideceu.

Um laço vai se transformando rapidamente em um nó. Um aperto no peito, um nó na garganta. É como se o chão fugisse e não sabemos mais onde pisar. É uma espécie de desterritorialização: você se sente perdido, sem chão, sem lugar. É preciso botar para fora esse mal estar em forma de desabafo. É preciso falar, contar, lamentar… para que o nó não se transforme em nódulo.

Solto a voz nas estradas / Já não quero parar / Meu caminho é de pedra / Como posso sonhar / Sonho feito de brisa / Vento vem terminar / Vou fechar o meu pranto / Vou querer me matar

Ao soltar a voz, parece que o grito preso na garganta vai desatando o nó. Então, falamos sem parar. O chão que era firme para a caminhada da vida, torna-se um sem chão, um chão pedregoso, perigoso, onde cada passo demanda um tempo e cuidado: as pedras estão soltas. É como andar sobre as pedras dispostas no leito do rio. Se o sofrimento se alonga, chega-se a estar cara a cara com a morte. Uma morte simbólica, uma morte como encerramento, como finalidade. Fim de uma história, final de um amor. Não se trata de uma morte física mas de uma morte em vida. Neste sentido existem mortes... e vida segue!

Vou seguindo pela vida / Me esquecendo de você / Eu não quero mais a morte / Tenho muito que viver / Vou querer amar de novo / E se não der não vou sofrer / Já não sonho, hoje faço / Com meu braço o meu viver

O tempo vai passando lentamente porque a memória se mantém viva. Como diz Chico Buarque na linda canção chamada Romance: “com todas as canções, os momentos bons e as horas más que a memória coa”. Imagine que dentro da cabeça existe um pequeno coador de café, daqueles de pano, onde as tristezas vividas, as amarguras, as chateações ficam presas no pano. E apenas passa pelo coador tudo aquilo que houve de bom. Os momentos bons, as alegrias, a felicidade mesmo que breve, que instantes vividos. Esses ficam eternizados na memória. Porque o tempo vai fazendo seu trabalho de deixar o excesso de peso pelo caminho e guardar no corpo apenas aquilo que realmente importa, aquilo que dá leveza, que facilita a caminhada pois a vida segue seu curso. Aquela velha imagem vai se apagando, outros mundos vão surgindo. É a vida renascendo... até que um novo amor acontece. Ou não. Mas isso nem importa tanto assim. O que importa mesmo é avançar no sentido de tomar para si a própria vida. Esta é uma leitura possível, dentre tantas, da canção Travessia (Fernando Brant e Milton Nascimento).


Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 25 de janeiro de 2021

Lido por Sofia Mercía no programa América Livre, da rádio progresso em Honduras. 20/set/2023