Uma Travessia


Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver / Forte eu sou mas não tem jeito / Hoje eu tenho que chorar / Minha casa não é minha / E nem é meu este lugar / Estou só e não resisto / Muito tenho pra falar

A pessoa se foi. Teria acabado o amor? Teria nascido um novo amor? um laço está desfazendo... O dia se fez noite, o sol se fez lua, toda cor desbotou, empalideceu.

Um laço vai se transformando rapidamente em um nó. Um aperto no peito, um nó na garganta. É como se o chão fugisse e não sabemos mais onde pisar. É uma espécie de desterritorialização: você se sente perdido, sem chão, sem lugar. É preciso botar para fora esse mal estar em forma de desabafo. É preciso falar, contar, lamentar… para que o nó não se transforme em nódulo.

Solto a voz nas estradas / Já não quero parar / Meu caminho é de pedra / Como posso sonhar / Sonho feito de brisa / Vento vem terminar / Vou fechar o meu pranto / Vou querer me matar

Ao soltar a voz, parece que o grito preso na garganta vai desatando o nó. Então, falamos sem parar. O chão que era firme para a caminhada da vida, torna-se um sem chão, um chão pedregoso, perigoso, onde cada passo demanda um tempo e cuidado: as pedras estão soltas. É como andar sobre as pedras dispostas no leito do rio. Se o sofrimento se alonga, chega-se a estar cara a cara com a morte. Uma morte simbólica, uma morte como encerramento, como finalidade. Fim de uma história, final de um amor. Não se trata de uma morte física mas de uma morte em vida. Neste sentido existem mortes... e vida segue!

Vou seguindo pela vida / Me esquecendo de você / Eu não quero mais a morte / Tenho muito que viver / Vou querer amar de novo / E se não der não vou sofrer / Já não sonho, hoje faço / Com meu braço o meu viver

O tempo vai passando lentamente porque a memória se mantém viva. Como diz Chico Buarque na linda canção chamada Romance: “com todas as canções, os momentos bons e as horas más que a memória coa”. Imagine que dentro da cabeça existe um pequeno coador de café, daqueles de pano, onde as tristezas vividas, as amarguras, as chateações ficam presas no pano. E apenas passa pelo coador tudo aquilo que houve de bom. Os momentos bons, as alegrias, a felicidade mesmo que breve, que instantes vividos. Esses ficam eternizados na memória. Porque o tempo vai fazendo seu trabalho de deixar o excesso de peso pelo caminho e guardar no corpo apenas aquilo que realmente importa, aquilo que dá leveza, que facilita a caminhada pois a vida segue seu curso. Aquela velha imagem vai se apagando, outros mundos vão surgindo. É a vida renascendo... até que um novo amor acontece. Ou não. Mas isso nem importa tanto assim. O que importa mesmo é avançar no sentido de tomar para si a própria vida. Esta é uma leitura possível, dentre tantas, da canção Travessia (Fernando Brant e Milton Nascimento).


Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 25 de janeiro de 2021

Lido por Sofia Mercía no programa América Livre, da rádio progresso em Honduras. 20/set/2023

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