Ela saia de casa para trabalhar bem cedinho. Não sei sua profissão, não sei onde trabalha, mas sei que ela sai da casa toda manhã. Sei disso porque um cão dá o sinal da passagem da mulher. O cão é macho e não foi castrado. Não sei qual a satisfação de um cão macho ao ver uma mulher passando toda manhã, vestida de branco até os pés. Imagino que seja enfermeira e que o dono do cão seja homem. Apenas imagino e, imaginando, vou criando aqui uma realidade da mulher e o cão.
Ela acorda cedinho, imagino que se arruma e saia para o trabalho. Os latidos raivosos do cão chegam com os primeiros anúncios da manhã. Ela passa, ele late. Ele late muito, ele baba, amedronta. Ele pula, arranha o portão do cercadinho. Ela se assusta. Toda manhã é assim. Talvez ela esteja sonolenta pois, mesmo sabendo da diária repetição, ela se assusta e salta amedrontada na direção do meio fio.
Ela é uma mulher de 30 e poucos anos. Ele é um cão raivoso, medonho, assustador. Escuto os gritos de censura do dono: “cala boca, Jair!!!” Portanto, o cão raivoso é Jair. A casa fica numa ladeira, a mulher passa lentamente no início do dia, o que alonga o escândalo produzido por Jair em seus latidos de ódio e raiva. No final da tarde ela desce rapidamente a ladeira, o que abrevia o escândalo canino.
Jair é raivoso no geral, mas com a mulher que veste branco o comportamento do cão é exagerado. O que provocaria a raiva de Jair na caminhada da mulher de branco? seria o cheiro? dizem que os cães têm o olfato aguçado. Seria o ruído da passagem, do caminhar, seria o impacto da chinela na calçadinha portuguesa? Mas talvez o incômodo disparador da raiva não esteja nela.
Se o problema estiver nele, podemos pensar que o Jair carrega sentimentos pouco (ou nada) carinhosos, nada solidários, que Jair não goste das mulheres. Podemos pensar também que Jair se comporta como uma criança mimada que se joga no chão gritando quando contrariado pela mãe. Seria a mulher de branco, ao passar, o despertar das frustrações e traumas na relação de Jair com sua mãe? Neste caso, Jair poderia procurar a psicanálise freudiana, clássica, mas isso depende do desejo dele e, até onde eu saiba, cães raivosos se acham superiores e, portanto, não precisam disso. Cães raivosos não cuidam de si, tampouco cuidam do outro. Cães raivosos ignoram a presença viva do outro, menosprezam o desejo e a liberdade do outro. A raiva e o ódio são afetos que cegam, que ensurdecem, que despertam latidos e baba. Jair é um cão raivoso.
No dia 30 a cena mudou. A mulher de branco bateu palma e, apesar do escândalo de Jair, seu dono apareceu. Da minha janela observei o diálogo: Jair raivoso, a mulher tentando dialogar. Jair é a imagem e semelhança de seu dono, igualmente raivoso e barulhento na sua pregação com normas do comportamento feminino sob a cortina de latidos de Jair. Quando não há espaço para o diálogo, está na hora de já ir embora. Ela seguiu o seu caminho. Desde o dia 30, Jair vive seu melhor momento: de boca calada, é um poeta.
Ivan Rubens
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