Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino prá lá
Tem dias e dias. Tem dias que estamos assim e tem dias que estamos assado. Tem dias que sentimos muita coisa interessante e tem dias que sentimos um imenso vazio. Quem nunca sentiu um vazio? Um vazio que parece ocupar tudo, parece te ocupar por inteiro, um vazio que pré_enche. Ficamos cheios de um vazio angustiante. É como uma roda gigante: ora está em cima, ora em baixo.
A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir / Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a roseira prá lá
Tem também dias de intensa alegria, dia que o céu parece mais azul, o ar parece mais fresco e uma alegria te toma, uma sensação de que o corpo quer brincar, quer dançar. E você se sente pleno, senhor de si e senhor do tempo, faz planos, projeta no futuro aquilo que deseja realizar. Mas alguma coisa acontece e tudo escapa por entre os dedos.
A roda da saia, a mulata / Não quer mais rodar, não senhor / Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou / A gente toma a iniciativa / Viola na rua, a cantar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a viola prá lá
Tem dias que nos sentimos loucos, fazemos coisas que estão completamente fora da ordem, fora do normal. De que ordem estamos falando? De que normal? Da norma que se estabelece! Mas quem estabelece as normas? Hum… Talvez a nossa loucura não seja tão louca assim, talvez seja apenas um sinal que estamos enxergando a loucura que tomou conta do mundo. Estamos falando de uma pequena loucura que significa uma compreensão da grande loucura do mundo: essa norma, essa normatização de um modo de vida que destrói, que mata, que despotencializa, que desvitaliza.
O samba, a viola, a roseira / Um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / Que a brisa primeira levou / No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a saudade prá lá
Apesar das normas, da domesticação, da desvitalização, um corpo dança: mulher negra grá_vita. Dança livre das normas, livre das sanidades, livre das camadas e camadas de moral e de ‘bons costumes’ que desencantaram a vida mundana. Ela dá vida à vida.
Roda mundo, roda gigante / Roda moinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração...
Tudo seguia normalmente até que chega a pandemia e… até respirar está levando à morte. O Coronavírus revela que tratar a natureza como mercadoria, tratar o meio ambiente como fonte de exploração é matar a vida neste Planeta. O governo do Pandemônio é a expressão deste tempo de morte nas relações econômicas e políticas que transborda para as relações sociais cotidianas. Este tempo de morte vai passar.
Roda-viva é uma canção de Chico Buarque.
Ivan Rubens
Geógrafo
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro de 9 de setembro de 2020
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