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Pior que está não fica?
Florentina Florentina, / Florentina de Jesus… / Não sei se tu me amas / E pra quê tu me seduz?
Francisco Everardo Tiririca Oliveira Silva é cearense de Itapipoca. Tiririca nasceu no dia 1º de maio, dia dos trabalhadores. Trata-se de uma data comemorativa internacional dedicada aos trabalhadores sendo feriado em muitos países. Mas por que um dia aos trabalhadores e trabalhadoras? Bem, vamos lá…
Grandes massas de trabalhadores reivindicavam melhores condições de trabalho em muitas cidades dos Estados Unidos. Não era para menos: a jornada de trabalho chegava a 17 horas por dia. Durante a manifestação em 1/maio/1886 o movimento foi reprimido pelas forças policiais na cidade de Chicago. Muitos trabalhadores foram presos e mortos em consequência das lutas. A luta faz a lei: direitos trabalhistas foram conquistados.
Aos 8 anos de idade, Tiririca começou sua carreira circense como Palhaço em pequenos espetáculos no interior do Ceará. Em 1996, a canção Florentina deu visibilidade nacional em execuções exaustivas nas rádios e aparições na TV aberta numa espécie de vale tudo pela audiência. Tiririca já respondeu por racismo e violência doméstica.
Florentina Florentina, / Florentina de Jesus… / Não sei se tu me amas / E pra quê tu me seduz?
Durante a campanha eleitoral de 2010, Tiririca perguntava ao eleitorado paulista: "O que é que faz um deputado federal? não sei. Mas vote em mim que eu te conto". E, “vote no Tiririca. Pior que está, não fica”. Tiririca tornou-se o Deputado Federal pelo estado de São Paulo com 1.348.295 votos. Esse fenômeno eleitoral foi interpretado como voto de protesto. Em 2014 foi reeleito com 1.016.796 votos e em 2018 com 445.521 mil votos, sempre pelo Partido da República. Dos 513 Deputados Federais, 1 é Tiririca.
Florentina Florentina, / Florentina de Jesus… / Não sei se tu me amas / E pra quê tu me seduz?
Pior que está não fica? Pode piorar, sim. Veja: Jair foi um Deputado Federal inexpressivo entre 1991 e 2018. Isso mesmo: 7 mandatos inexpressivos. No parlamento, suas palavras não causavam tanto estrago, era uma voz num universo de 513. Catalizando todo um ressentimento de classe produzido no Brasil, desde pensamentos mesquinhos a sentimentos tacanhos, o Messias tornou-se presidente. Sua pequenez compromete a grandeza do Brasil. Nosso país está aprendendo, pela dor, que estupidez e ignorância podem ser letais. Um homem que cultua a morte não consegue, mesmo que deseje, formular políticas públicas que resultem vida melhor para brasileiros e brasileiras. Faz um governo medíocre e incompetente. E a pandemia deixa explícito que o atual presidente não está à altura da maioria do povo brasileiro, não tem condição de liderar nada, que aposta no quanto pior melhor. Sua lógica é a da guerra, uma espécie de reedição do “ame-o ou deixe-o”, “quem não está comigo está contra mim”. Uma lógica em que adversários são inimigos e inimigos, numa guerra, são mortos ou presos.
Cloroquina Cloroquina, / Cloroquina tem no SUS… / não sei se funciona / mas a gente deduz!
ACOMPANHEIRAR-SE: Paulo Freire fala de sua vida
Paulo Freire fala de sua vida pessoal e profissional.
Realizado no Departamento do Instituto de Artes e Faculdade de Educação.
1985
Arquivo TV Unicamp
Zilda:
Queremos que essa gravação seja a primeira de uma série. Nesta primeira gravação vamos enfocar a parte da ligação de toda uma teoria sobre a prática do trabalho do Paulo Freire e do trabalho de todos aqueles que continuam ainda hoje. Para iniciar, pedimos ao Paulo que se apresente um pouco...
PAULO FREIRE
Interessante, eu sempre tenho dificuldade de falar de mim mesmo, de me apresentar. Sou Paulo Freire, nasci no Recife numa família de classe média bem comportada, me sentia bem e feliz dentro da família, na relação com meu pai, com minha mãe, com meus irmãos e os parentes. Nasci numa casa com quintal longo, largo, com frutas, fruteiras e passarinhos cantando. No fim dos anos 1920, nasci exatamente em 1921, minha família sofre o impacto da depressão econômica de 1929 e 1930 e essa coisa afetou a vida normal da nossa família e de tantas famílias. As implicações na minha vida e na minha história foram importantes para mim. Uma delas foi a experiência da fome. Não de uma fome demasiado agressiva como ainda temos milhões de meninos hoje, mas de qualquer maneira uma fome que maltratava. Uma fome quantitativa e qualitativa: às vezes comia pouco e quase sempre não comia bem. E essa coisa porém, sem ser masoquista, foi muito importante na minha vida.
A família sai do Recife em 1932 e vai para Jaboatão (dos Guararapes), cerca de 19 km de distância. Lá eu vivi parte da infância e a adolescência. Lá eu aprendi um monte de coisa, terminei mal um curso primário, não muito bem feito. Lá eu experimentei a dificuldade de aprender com fome, mas lá eu aprendi também a querer bem a vida, a estar contente no mundo… eu sou uma pessoa que tem momentos de tristeza mas, no geral, sou naturalmente feliz, contente, apesar de tudo. Os problemas me desafiam mas não chegam a me anular. Fiz meus estudos normais, meus estudos comuns, com dificuldade. No final da adolescência começo da juventude, retornamos a morar no Recife, minha grande paixão. Lá eu faço o meu curso ginasial, o superior, tenho umas experiências muito interessante, a partir dos 22 anos, de ensinar língua portuguesa. Essa coisa me apaixonava, e foi exatamente por causa da língua portuguesa que eu conheci a Elza, um enorme momento da minha vida. Fui professor da Elza e, por causa disso eu tenho 7 netos hoje. Esse encontro com a Elza em que eu também fui encontrado por ela (seria horrível se apenas eu a encontrasse), que fomos encontrados. Nós nos encontramos numa esquina qualquer do mundo, numa certa hora do tempo. E a Elza exerceu sobre mim uma influência enorme, no seu preponderante silêncio, na sua forma de estar sendo muito calma, de vez enquanto apenas barulhenta. Uma excelente educadora. Trabalhava sobretudo na pré-escola. Nos casamos. E o casamento com Elza me abre um caminho, inaugura uma nova fase na minha vida, de curiosidade, de estímulos e assim eu caio na educação.
Estou tentando pinçar alguns momentos na infância, a fome, a crise que afetou a família. O mundo de Casa Amarela (bairro) no Recife que se estende na experiência de Jaboatão, eu ultrapasso o quilômetro da casa onde eu morava. E não é possível ampliar muito a geografia sem se deixar tocar pela cultura e pela história. De maneira que eu fui tocado nessa ampliação da geografia em Jaboatão. Depois eu volto, termino o estudo no Recife, me faço professor de língua portuguesa...a experiência com a língua portuguesa foi marcante nos estudos que eu fiz naquela época quando eu li (fala de um título de livro mas está incompreensível) e não entendia muito… Depois o encontro com Elza que quase me pega pela mão e me traz para o campo da educação onde eu me sentia perfeitamente bem. O meu trabalho por exemplo, já com 24 pra 25 anos numa instituição que surge num desses momentos lúcidos da classe dominante brasileira, o SESI, que se cria no sentido de apascentar um pouco a consciência do trabalhador emergente. O SESI de Pernambuco se abre para mim como um campo de (...)
O SESI é um outro marco. Um organismo assistencialista evidentemente mas que me possibilita um reencontro com a classe trabalhadora. Eu havia encontrado os filhos da classe trabalhadora na minha infância e agora eu encontro os pais. E o SESI, em certo sentido, me radicaliza ao invés de me assistencializar. É exatamente do SESI a partir de 1946 que eu começo toda uma busca, toda uma pesquisa ao mesmo tempo no campo da prática, por exemplo trabalhando no campo da educação popular mesmo que não chamasse assim. De outro lado, foi um período de intensa preocupação reflexiva apoiado em leituras que me ajudavam nessa reflexão sobre a realidade brasileira. O SESI se apresenta para mim como um momento e um espaço de intenso aprendizado. As raízes mais profundas de tudo isso que se veio chamar depois de método Paulo Freire, uma designação que não me agrada muito, está lá.
O SESI é um outro marco. Um organismo assistencialista evidentemente mas que me possibilita um reencontro com a classe trabalhadora. Eu havia encontrado os filhos da classe trabalhadora na minha infância e agora eu encontro os pais. E o SESI, em certo sentido, me radicaliza ao invés de me assistencializar. É exatamente do SESI a partir de 1946 que eu começo toda uma busca, toda uma pesquisa ao mesmo tempo no campo da prática, por exemplo trabalhando no campo da educação popular mesmo que não chamasse assim. De outro lado, foi um período de intensa preocupação reflexiva apoiado em leituras que me ajudavam nessa reflexão sobre a realidade brasileira. O SESI se apresenta para mim como um momento e um espaço de intenso aprendizado. As raízes mais profundas de tudo isso que se veio chamar depois de método Paulo Freire, uma designação que não me agrada muito, está lá.
Depois vem minha participação direta no movimento de cultura popular do Recife, que se antecipou a outros tantos movimentos de cultura popular no Brasil. Todo desenvolvimento da minha prática, da minha reflexão se dá no corpo desse movimento, depois eu me estendo até a universidade e coordeno o serviço de extensão cultural. Depois vem a experiência de Angicos onde se testa pela primeira vez em grande escala o que se chamou de método de alfabetização, depois eu vou até o plano nacional com ministro Paulo de Tarso no governo João Goulart e vem o golpe de Estado. O golpe frustra toda uma geração, e eu sou afastado da minha atividade na universidade, preso. Me aposentam quando eu não tinha nem tempo de serviço nem doença, nem queria me aposentar. Fui aposentado sem consulta e hoje eu ganho até muito bem, 800 mil cruzeiros na aposentadoria na Universidade Federal de Pernambuco. Daí eu parto para o exílio e vem toda uma vida de andarilhagem que eu experimentei, nos quase 16 anos de exílio onde eu trabalhei, me aprofundei na prática e na reflexão primeiro no Chile, depois nos Estados Unidos, depois morando em Genebra na Suíça mas me estendendo pelo mundo afora. É exatamente durante o exílio que tento por no papel, em alguns livros, em alguns trabalhos, alguma coisa que me parecia poder ser a fundamentação teórica da prática que eu vinha vivendo neste tempo. Numa síntese incompleta e imperfeita, este sou eu mas sou, sobretudo, um brasileiro para quem a terra dos outros também é boa. Eu não acho que só presta o que é da gente…
Eu não me enfermei, não adoeci por andar o mundo afora. Agora, é claro que eu jamais esqueci foi a minha raiz. Por isso o Brasil foi, nos meus tempos de exílio, sempre uma pre-ocupação. Para que ele pudesse ser uma pré-ocupação eu precisei me ocupar no tempo do exílio. E me ocupei nos espaços emprestados do exílio. Se eu não tivesse me ocupado no outro espaço eu não teria me preocupado com o Brasil. E aí seria o fim! No momento que foi possível, no chamado processo de abertura, a volta para o país, eu não hesitei, não contei até 10 e aqui estou desde 1980, tendo passado por aqui em 1979 para uma visita e em seguida voltei.
Pergunta:
Paulo, nesta sua apresentação você não conseguiu se desligar da sua própria história. Então, gostaria de acrescentar mais alguma coisa nesta sua apresentação desde sua infância, desde o Sesi até os dias atuais?
PAULO FREIRE
Sobre a minha formação, acrescentar um componente: como eu vim aprendendo no meu encontro com os grupos populares a respeitar a compreensão do mundo que os grupos populares estão tendo no momento em que o educador chega, por exemplo. E dentro dessa tentativa de compreensão que eu comecei a aprender com os grupos populares com os quais eu comecei a trabalhar muito moço eu incluiria a necessidade de entender as diferenças de classe do ponto de vista da linguagem. A maneira de compreender e explicar os fatos em que a gente se envolve. Muito cedo, nas minhas primeiras experiências como educador, percebi isso. De um lado eu comecei a entender que não era possível, trabalhando em educação popular com os grupos populares, que não era possível esquecer ou botar entre parênteses as aspirações do grupo popular, por exemplo, os fantasmas do grupo popular, as dúvidas, os sonhos, a sua forma de compreender-se em relação com o mundo objetivo e a sua maneira de expressar esta compreensão de si com o mundo que é a sua linguagem. Eu comecei muito cedo a entender que não era possível trabalhar com os grupos populares a não ser partindo deste universo da compreensão e da expressão que os grupos populares tivesse de si e do mundo. Por isso mesmo que eu estou dizendo que era para mim impossível trabalhar com eles como educador a não ser partindo da compreensão que estavam tendo, por isso mesmo eu disse ‘partindo da’, eu jamais pensei também que fosse correto ficar com os grupos populares ao nível da sua compreensão do mundo. É interessante… às vezes eu fico espantado quando eu ouço certa crítica, a mim insinuando que eu pretendo com o partir da compreensão, ficar nela. É incrível porque eu nunca pude compreender que partir significasse ficar. Quero dizer, você partir de algum lugar para alcançar outro. Partir é um verbo que implica, um verbo que envolve um movimento que tem um ponto de referência no deslocamento e um ponto de referência na chegada. Eu nunca disse ficar ao nível da compreensão popular mas jamais aceitei que fosse possível chegar a uma leitura mais rigorosa do real do mundo, uma compreensão mais concreta do mundo (que nós pensamos que é a mais concreta, mais objetiva) sem partir da leitura para mim também crítica do ponto de vista dos parâmetros do grupo popular que o grupo popular faz. Essa foi uma coisa eu poderia ter anexado à minha formação. Quero dizer, essa coisa eu ponho agora dentro de quem eu sou para mostrar que no fundo eu aprendi isso, e quem me ensinou isso foi exatamente a realidade na qual eu trabalhei com os grupos populares. É por causa desse aprendizado da obviedade que eu digo hoje que, se eu estou num lado de uma rua e penso por N razões de estar no outro lado, eu não posso fazer outra coisa senão atravessar a rua. Então eu saio do lado de cá e vou para o lado de lá. Eu só entendo o lá porque tem um cá, um aqui. Se não houvesse o aqui eu jamais entenderia o lá e vice versa. O que significa então é que ninguém chega lá partindo de lá, mas sempre partindo de um aqui. Um dos equívocos que cometemos os educadores enquanto políticos e os políticos enquanto educadores, as vezes os educadores cometem mais esse equívoco é não perceber que o aqui da gente é quase sempre o lá do educando. Então eu não posso arrancar o educando do seu aqui, trazê-lo ao meu aqui que é o lá dele. Por isso, para mim, um bom educador, uma boa educadora, tem que permanentemente experimentar a andarilhagem. A andarilhagem entre o seu aqui e o lá a que pretende ir e o aqui do grupo popular que tem no seu aqui o lá dele. O educador e a educadora que pensa concretamente, que pensa dialeticamente, dinamicamente, ele tem que estar para cá e para lá constantemente. E por isso que às vezes o sujeito pode cansar de andar tanto. Esse seria o outro ponto que tem a ver um pouco com a teoria da própria prática que eu acho se incorpora a minha própria biografia. Veja, eu não quero dar a impressão que essa coisa me pertence como exclusividade. Não! eu sou um entre um sem número de educadores e educadoras que pensam e praticam isso.
Pergunta:
Tornando mais complexo, tornando mais complicadas as coisas que nós estamos vivendo no mundo. Como é que a gente complica por exemplo a relação social, por exemplo a minha relação com o favelado, por exemplo a minha relação com o entendimento do favelado, da luta dele. Como é que a gente torna complicado, sou seja, como é que a gente faz teoria?
PAULO FREIRE
Do ponto de vista da compreensão, do lado nossa, da própria ida nossa ao grupo popular... Da compreensão que nós temos ou que estamos tendo dos fatos por exemplo… tem que ver com os procedimentos que nós usamos para nos aproximar dos fatos e dos objetos no sentido de conhecê-los. Procedimentos que nos darão mais ou menos rigorosidade ou nos farão mais ou menos rigorosos na aproximação ao objeto, na tomada de distância do objeto e que, em função dessa maior ou menor rigorosidade de aproximação ao objeto nos darão maior ou menor exatidão no achado. Veja que a linguagem está mais complicada… (rs) é terrível. Você perguntou até porque que a gente complica... Mas eu acho que essa coisa está embutida na sua pergunta. A nossa ida aos grupos populares, você vê que a gente está usando aqui ida, significa que a gente está fazendo exatamente um movimento que vai de fora para dentro. A gente não está lá, a gente não é de lá. Isso tem que ver exatamente com a posição da classe em que a gente se situa, em que a gente nasceu. Para mim a questão fundamental é saber… e aí que entra agora questão da opção política que eu acho fundamental para compreender a prática do educador. É a opção dele ou dela e depois a coerência com essa opção explicitada na sua prática. Portanto, como é que eu sou coerente no momento em que opto pelas classes populares e marcho (caminho) até lá, como é que eu busco ser coerente e já no ato de marchar até lá. Como é que a minha marcha até lá já tem que ser uma marcha não de quem invade mas de quem pretende companheirar-se, de quem pretende virar companheiro. Quero dizer, a minha viagem até lá tem que ser coerente com a opção que me fez viajar até lá. Por isso mesmo que não posso invadir a área a que essa viagem me leva. Nós temos que compreender também, para ficar apenas nesse ângulo do procedimento em torno do objeto ou da compreensão do fato, nós temos que, na relação com os grupos populares nos perguntar (eu diria: procurar confirmar, constatar, averiguar) como é também que os grupos populares se aproximam dos fatos? Quero dizer:
Pergunta:
Paulo, nesta sua apresentação você não conseguiu se desligar da sua própria história. Então, gostaria de acrescentar mais alguma coisa nesta sua apresentação desde sua infância, desde o Sesi até os dias atuais?
PAULO FREIRE
Sobre a minha formação, acrescentar um componente: como eu vim aprendendo no meu encontro com os grupos populares a respeitar a compreensão do mundo que os grupos populares estão tendo no momento em que o educador chega, por exemplo. E dentro dessa tentativa de compreensão que eu comecei a aprender com os grupos populares com os quais eu comecei a trabalhar muito moço eu incluiria a necessidade de entender as diferenças de classe do ponto de vista da linguagem. A maneira de compreender e explicar os fatos em que a gente se envolve. Muito cedo, nas minhas primeiras experiências como educador, percebi isso. De um lado eu comecei a entender que não era possível, trabalhando em educação popular com os grupos populares, que não era possível esquecer ou botar entre parênteses as aspirações do grupo popular, por exemplo, os fantasmas do grupo popular, as dúvidas, os sonhos, a sua forma de compreender-se em relação com o mundo objetivo e a sua maneira de expressar esta compreensão de si com o mundo que é a sua linguagem. Eu comecei muito cedo a entender que não era possível trabalhar com os grupos populares a não ser partindo deste universo da compreensão e da expressão que os grupos populares tivesse de si e do mundo. Por isso mesmo que eu estou dizendo que era para mim impossível trabalhar com eles como educador a não ser partindo da compreensão que estavam tendo, por isso mesmo eu disse ‘partindo da’, eu jamais pensei também que fosse correto ficar com os grupos populares ao nível da sua compreensão do mundo. É interessante… às vezes eu fico espantado quando eu ouço certa crítica, a mim insinuando que eu pretendo com o partir da compreensão, ficar nela. É incrível porque eu nunca pude compreender que partir significasse ficar. Quero dizer, você partir de algum lugar para alcançar outro. Partir é um verbo que implica, um verbo que envolve um movimento que tem um ponto de referência no deslocamento e um ponto de referência na chegada. Eu nunca disse ficar ao nível da compreensão popular mas jamais aceitei que fosse possível chegar a uma leitura mais rigorosa do real do mundo, uma compreensão mais concreta do mundo (que nós pensamos que é a mais concreta, mais objetiva) sem partir da leitura para mim também crítica do ponto de vista dos parâmetros do grupo popular que o grupo popular faz. Essa foi uma coisa eu poderia ter anexado à minha formação. Quero dizer, essa coisa eu ponho agora dentro de quem eu sou para mostrar que no fundo eu aprendi isso, e quem me ensinou isso foi exatamente a realidade na qual eu trabalhei com os grupos populares. É por causa desse aprendizado da obviedade que eu digo hoje que, se eu estou num lado de uma rua e penso por N razões de estar no outro lado, eu não posso fazer outra coisa senão atravessar a rua. Então eu saio do lado de cá e vou para o lado de lá. Eu só entendo o lá porque tem um cá, um aqui. Se não houvesse o aqui eu jamais entenderia o lá e vice versa. O que significa então é que ninguém chega lá partindo de lá, mas sempre partindo de um aqui. Um dos equívocos que cometemos os educadores enquanto políticos e os políticos enquanto educadores, as vezes os educadores cometem mais esse equívoco é não perceber que o aqui da gente é quase sempre o lá do educando. Então eu não posso arrancar o educando do seu aqui, trazê-lo ao meu aqui que é o lá dele. Por isso, para mim, um bom educador, uma boa educadora, tem que permanentemente experimentar a andarilhagem. A andarilhagem entre o seu aqui e o lá a que pretende ir e o aqui do grupo popular que tem no seu aqui o lá dele. O educador e a educadora que pensa concretamente, que pensa dialeticamente, dinamicamente, ele tem que estar para cá e para lá constantemente. E por isso que às vezes o sujeito pode cansar de andar tanto. Esse seria o outro ponto que tem a ver um pouco com a teoria da própria prática que eu acho se incorpora a minha própria biografia. Veja, eu não quero dar a impressão que essa coisa me pertence como exclusividade. Não! eu sou um entre um sem número de educadores e educadoras que pensam e praticam isso.
Pergunta:
Tornando mais complexo, tornando mais complicadas as coisas que nós estamos vivendo no mundo. Como é que a gente complica por exemplo a relação social, por exemplo a minha relação com o favelado, por exemplo a minha relação com o entendimento do favelado, da luta dele. Como é que a gente torna complicado, sou seja, como é que a gente faz teoria?
PAULO FREIRE
Do ponto de vista da compreensão, do lado nossa, da própria ida nossa ao grupo popular... Da compreensão que nós temos ou que estamos tendo dos fatos por exemplo… tem que ver com os procedimentos que nós usamos para nos aproximar dos fatos e dos objetos no sentido de conhecê-los. Procedimentos que nos darão mais ou menos rigorosidade ou nos farão mais ou menos rigorosos na aproximação ao objeto, na tomada de distância do objeto e que, em função dessa maior ou menor rigorosidade de aproximação ao objeto nos darão maior ou menor exatidão no achado. Veja que a linguagem está mais complicada… (rs) é terrível. Você perguntou até porque que a gente complica... Mas eu acho que essa coisa está embutida na sua pergunta. A nossa ida aos grupos populares, você vê que a gente está usando aqui ida, significa que a gente está fazendo exatamente um movimento que vai de fora para dentro. A gente não está lá, a gente não é de lá. Isso tem que ver exatamente com a posição da classe em que a gente se situa, em que a gente nasceu. Para mim a questão fundamental é saber… e aí que entra agora questão da opção política que eu acho fundamental para compreender a prática do educador. É a opção dele ou dela e depois a coerência com essa opção explicitada na sua prática. Portanto, como é que eu sou coerente no momento em que opto pelas classes populares e marcho (caminho) até lá, como é que eu busco ser coerente e já no ato de marchar até lá. Como é que a minha marcha até lá já tem que ser uma marcha não de quem invade mas de quem pretende companheirar-se, de quem pretende virar companheiro. Quero dizer, a minha viagem até lá tem que ser coerente com a opção que me fez viajar até lá. Por isso mesmo que não posso invadir a área a que essa viagem me leva. Nós temos que compreender também, para ficar apenas nesse ângulo do procedimento em torno do objeto ou da compreensão do fato, nós temos que, na relação com os grupos populares nos perguntar (eu diria: procurar confirmar, constatar, averiguar) como é também que os grupos populares se aproximam dos fatos? Quero dizer:
quais são os procedimentos que eles seguem, que eles usam para achar coisas?
Quais são as suas complicações?
No fundo isso: como é que se elabora esse saber?
Pergunta:
Paulo, tu falaste em acompanheirar-se. E isso que parece ser uma tônica importante do trabalho do educador com o grupo popular, do educador que não é do grupo popular. Talvez fosse importante a gente refletir um pouco o que significa esse acompanheirar-se uma vez que tu fala em situação de classe…. o que isso significa? em que consiste essa solidariedade em relação a esse objeto que está sendo discutido que vem a ser a transformação do mundo?
PAULO FREIRE
Muito bom… Amilcar Cabral que foi o grande líder na Guiné Bissau, mas sobretudo um líder africano… dificilmente não se encontraria Amilcar Cabral na história dos movimentos africanos de libertação independente de ter passado pelo país A, B ou C. Pelas cinco ex-colônias de Portugal não há dúvida que Amilcar portou com toda a luta, com a sua presença teórica, sua amorosidade, sua lucidez. Mas ele diz num de seus textos, quase vou repetir aqui textualmente… ele diz, analisando o que ele chamava de pequena burguesia nacional africana, ele diz que só há um caminho para a pequena burguesia nacional africana de um país A, B ou C, cumprir uma tarefa rigorosamente revolucionária, portanto a serviço do seu povo. Ele inclusive usa a palavra povo apesar da… para ele está muito claro quem é apesar do que possa haver de ambíguo no conceito. Para Amilcar, só há um caminho: é o do suicídio de classe por parte dos chamados intelectuais da pequena burguesia. Diz ele: eles terão que suicidar como classe para renascer como trabalhador revolucionário. Ora, eu não tenho dúvida nenhuma de que, simultaneamente a Amilcar sem porém ter lido Amilcar (eu li Amilcar depois de ter escrito a Pedagogia do Oprimido) mas na Pedagogia do Oprimido eu faço referência a isso que ele chamou de suicídio de classe, chamando de páscoa. Obviamente eu não tenho porque negar aí uma marca da minha formação cristã etc… mas eu desenvolvo até isso num certo momento da Pedagogia do Oprimido quando eu digo que nós temos que morrer enquanto classe dominante (não sei se eu usava classe dominante) para renascer. Isso é a páscoa como travessia etc. Essa experiência que Marx fez, que Guevara fez, que Fidel fez e continua fazendo, que os revolucionários verdadeiros que vieram da classe burguesa e pequeno burguesa tiveram que fazer…. essa experiência não é realmente fácil, é profundamente demandante. É no núcleo disso que eu situei, que eu usei o acompanheirar-se. Eu não estou dizendo que o intelectual deixe o seu bairro de classe média e vá morar na favela para acompanheirar-se. Eu acho que essa solidariedade não é necessariamente assim. Inclusive às vezes fazendo-se isso perde-se a possibilidade de uma maior atuação política. Mas o tornar-se companheiro do companheiro que está lá, para mim demanda, exige esse suicídio a que Cabral se referia. Essa superação, esse estar com a massa popular e não apenas para ela, e nunca sobre ela. Isso vai exigir então uma enorme coerência. Eu acho que um intelectual que não se esforça no sentido de compreender a linguagem metafórica popular, um intelectual que chega à área popular convencido de que o corpo individual e social da área popular é o corpo vazio de saber e que se desconhece que o fato mesmo de que as classes populares têm uma certa prática é suficiente para lhes dar uma certa sabedoria, e que esquecendo então como se gesta esta sabedoria e desrespeitando a validade dessa sabedoria pretende impor, em nome da salvação da classe popular que se dá pela revolução, a teoria para ele acabada da revolução, para mim (apesar de ter seus méritos porque há muito sacrifício também entre os que fazem isso) eu acho que os que fazem isso não chegaram a acompanheirar-se. Eu acho que a solidariedade não é que o intelectual de repente diga: eu sou igual aos outros. Não, ele tem uma função diferente, e uma função organizadora da cultura. O Gramsci está absolutamente certo. Mas o que não é possível é primeiro desconhecer que os grupos populares também são intelectuais. Eles podem não ter tarefas intelectuais. Então é neste sentido que eu colocava o acompanheirar-se.
Pergunta:
Continuando um pouco dentro dessa reflexão, quando se fala na relação educador-educando, esse acompanheirar-se vai acontecendo na medida em que ambos vão se reeducando. Quando se fala em termos de cultura popular, como tu poderia explicitar um pouco melhor esse aprender do intelectual que tu dizes ter uma papel e uma função inclusive organizativa. Acho essa questão importante porque a gente como educador vai até o meio popular, em que consiste o nosso aprendizado uma vez que a nossa tarefa é de organização?
PAULO FREIRE
Esse é um problema fundamental. É interessante observar como diante desta questão que tu colocas a gente pode ter, grosso modo, duas respostas falhas e falsas. Ambas com nome próprio. A primeira seria aquela segundo a qual a verdade organizativa, a verdade da sabedoria, a verdade das opções está exclusivamente nas bases populares. Olhe, quando a gente se põe diante desta indagação que tu fizeste, em uma posição excludente… eu acho que a gente pifa. Então veja: se eu olho… porque esta pergunta tua tem que ver com o papel do intelectual e o papel do grupo popular. Então, se eu me defino, porque a verdade toda está na base popular, coerentemente eu tenho que negar a mais mínima contribuição da teoria, eu tenho que negar a mais mínima, e veja que isso já é inviável… ninguém pode praticar sem teorizar, ninguém pode praticar sem que não haja na prática uma teoria embutida… ela pode não estar sendo vista, percebida. Mas se eu opto por isso, se eu me inclino para esta posição do reforço, da ênfase, da exclusividade da base popular, eu nego a teoria acadêmica por exemplo; eu digo:
Pergunta:
Paulo, tu falaste em acompanheirar-se. E isso que parece ser uma tônica importante do trabalho do educador com o grupo popular, do educador que não é do grupo popular. Talvez fosse importante a gente refletir um pouco o que significa esse acompanheirar-se uma vez que tu fala em situação de classe…. o que isso significa? em que consiste essa solidariedade em relação a esse objeto que está sendo discutido que vem a ser a transformação do mundo?
PAULO FREIRE
Muito bom… Amilcar Cabral que foi o grande líder na Guiné Bissau, mas sobretudo um líder africano… dificilmente não se encontraria Amilcar Cabral na história dos movimentos africanos de libertação independente de ter passado pelo país A, B ou C. Pelas cinco ex-colônias de Portugal não há dúvida que Amilcar portou com toda a luta, com a sua presença teórica, sua amorosidade, sua lucidez. Mas ele diz num de seus textos, quase vou repetir aqui textualmente… ele diz, analisando o que ele chamava de pequena burguesia nacional africana, ele diz que só há um caminho para a pequena burguesia nacional africana de um país A, B ou C, cumprir uma tarefa rigorosamente revolucionária, portanto a serviço do seu povo. Ele inclusive usa a palavra povo apesar da… para ele está muito claro quem é apesar do que possa haver de ambíguo no conceito. Para Amilcar, só há um caminho: é o do suicídio de classe por parte dos chamados intelectuais da pequena burguesia. Diz ele: eles terão que suicidar como classe para renascer como trabalhador revolucionário. Ora, eu não tenho dúvida nenhuma de que, simultaneamente a Amilcar sem porém ter lido Amilcar (eu li Amilcar depois de ter escrito a Pedagogia do Oprimido) mas na Pedagogia do Oprimido eu faço referência a isso que ele chamou de suicídio de classe, chamando de páscoa. Obviamente eu não tenho porque negar aí uma marca da minha formação cristã etc… mas eu desenvolvo até isso num certo momento da Pedagogia do Oprimido quando eu digo que nós temos que morrer enquanto classe dominante (não sei se eu usava classe dominante) para renascer. Isso é a páscoa como travessia etc. Essa experiência que Marx fez, que Guevara fez, que Fidel fez e continua fazendo, que os revolucionários verdadeiros que vieram da classe burguesa e pequeno burguesa tiveram que fazer…. essa experiência não é realmente fácil, é profundamente demandante. É no núcleo disso que eu situei, que eu usei o acompanheirar-se. Eu não estou dizendo que o intelectual deixe o seu bairro de classe média e vá morar na favela para acompanheirar-se. Eu acho que essa solidariedade não é necessariamente assim. Inclusive às vezes fazendo-se isso perde-se a possibilidade de uma maior atuação política. Mas o tornar-se companheiro do companheiro que está lá, para mim demanda, exige esse suicídio a que Cabral se referia. Essa superação, esse estar com a massa popular e não apenas para ela, e nunca sobre ela. Isso vai exigir então uma enorme coerência. Eu acho que um intelectual que não se esforça no sentido de compreender a linguagem metafórica popular, um intelectual que chega à área popular convencido de que o corpo individual e social da área popular é o corpo vazio de saber e que se desconhece que o fato mesmo de que as classes populares têm uma certa prática é suficiente para lhes dar uma certa sabedoria, e que esquecendo então como se gesta esta sabedoria e desrespeitando a validade dessa sabedoria pretende impor, em nome da salvação da classe popular que se dá pela revolução, a teoria para ele acabada da revolução, para mim (apesar de ter seus méritos porque há muito sacrifício também entre os que fazem isso) eu acho que os que fazem isso não chegaram a acompanheirar-se. Eu acho que a solidariedade não é que o intelectual de repente diga: eu sou igual aos outros. Não, ele tem uma função diferente, e uma função organizadora da cultura. O Gramsci está absolutamente certo. Mas o que não é possível é primeiro desconhecer que os grupos populares também são intelectuais. Eles podem não ter tarefas intelectuais. Então é neste sentido que eu colocava o acompanheirar-se.
Pergunta:
Continuando um pouco dentro dessa reflexão, quando se fala na relação educador-educando, esse acompanheirar-se vai acontecendo na medida em que ambos vão se reeducando. Quando se fala em termos de cultura popular, como tu poderia explicitar um pouco melhor esse aprender do intelectual que tu dizes ter uma papel e uma função inclusive organizativa. Acho essa questão importante porque a gente como educador vai até o meio popular, em que consiste o nosso aprendizado uma vez que a nossa tarefa é de organização?
PAULO FREIRE
Esse é um problema fundamental. É interessante observar como diante desta questão que tu colocas a gente pode ter, grosso modo, duas respostas falhas e falsas. Ambas com nome próprio. A primeira seria aquela segundo a qual a verdade organizativa, a verdade da sabedoria, a verdade das opções está exclusivamente nas bases populares. Olhe, quando a gente se põe diante desta indagação que tu fizeste, em uma posição excludente… eu acho que a gente pifa. Então veja: se eu olho… porque esta pergunta tua tem que ver com o papel do intelectual e o papel do grupo popular. Então, se eu me defino, porque a verdade toda está na base popular, coerentemente eu tenho que negar a mais mínima contribuição da teoria, eu tenho que negar a mais mínima, e veja que isso já é inviável… ninguém pode praticar sem teorizar, ninguém pode praticar sem que não haja na prática uma teoria embutida… ela pode não estar sendo vista, percebida. Mas se eu opto por isso, se eu me inclino para esta posição do reforço, da ênfase, da exclusividade da base popular, eu nego a teoria acadêmica por exemplo; eu digo:
- não tenho nada que ver com a academia, a academia é toda ela uma maluquice, um blablablá.
Eu nego um intelectual como o professor Roberto Romano por exemplo… Eu diria, se a minha perspectiva é essa da base, num encontro ou num seminário de fim de semana para discutir a prática da educação popular, eu não posso admitir a presença do professor Gadotti, nem do professor Romano porque eles não têm nada o que fazer, nada a dizer, são excelentes professores lá na universidade. Eu admito aqui o Brandão porque além de ser um excelente antropólogo e professor da unicamp, um excelente intelectual, ele também vez por outra se dá às intimidades com os brasileiros então este eu aceito. Veja que essa posição é absolutamente falsa, absolutamente errada. Essa posição é a que nega o papel da reflexão teórica… eu não tenho dúvida que o professor Romano sem ter ido a favela pode dar uma excelente contribuição a um grupo de educadores populares que o apresentem um problema teórico e sobre o qual ele pense e reflete. O que pode haver é uma dificuldade do professor Romano é de traduzir. Dificuldade que nós temos e que começamos a diminuir quando vocês, por exemplo, sendo bons intelectuais se metem na área popular. Então a dificuldade do Romano poderia ser de traduzir mais popularmente certos conceitos que explicitam uma aproximação rigorosa ao objeto. Mas não pode é negar a contribuição que ele pode dar. Então essa seria a primeira possibilidade de um enorme equívoco.
A segunda é a de negar a validade de tudo o que se faz na área popular, a de negar a validade e a importância do senso comum. A segunda seria a dicotomia, a negação do senso comum e a única aceitação da rigorosidade acadêmica. Então, essa postura… enquanto a primeira é uma postura basista que conduz a um certo espontaneísmo, um certo populismo e que distorce a prática popular, a segunda é elitista. Ambas são autoritárias no meu entender. Um autoritarismo elitista do lado de certos teóricos que terminam sendo mals teóricos, principalmente porque cortam, porque não descobrem que a teoria é histórica e por isso tem historicidade… a teoria não é um à priori do mundo, um à priori da história, não: ela se dá na história, ela se dá na medida em que o ser humano primeiro praticou o mundo, primeiro alterou e cambiou o mundo. E então no transformar o mundo vem embutida uma certa explicação que ilumina o próprio ato. Então eu acho que o grande problema da gente como intelectual que adere a transformação radical da sociedade é saber até que ponto, na nossa caminhada, nós vivemos a experiência da coerência. De um lado negando, fugindo ao perigo e à tentação das explicações e das práticas basistas; do outro lado, de como correr também para longe das tentações elitistas. Então, para concluir a tua pergunta e de certa maneira bater um pouco no que Adriano colocava antes, eu acho…. e nisso Gramsci também, nisso que eu vou dizer, ele é muito claro…. no fundo eu acho que o que a gente teria que fazer era juntar à sensibilidade popular diante do concreto, a nossa capacidade de apreensão crítica do concreto. Eu acho que, nem a sensibilidade só (que é tipicamente popular) explica o fato, e a tentativa de compreensão do fato a nível de apreensão crítica que negue a sensibilidade… eu diria agora: a criticidade que não se molha da sensibilidade, para mim distorce o seu achado. Eu acho que um dos trabalhos nossos, exatamente o de como viver essa tensão permanente entre o conhecimento que fica ao nível da sensibilidade do fato que é preponderantemente o que se dá na área popular, que oferece (eu penso que é), que explica dar vez que seja…. Quero dizer: como conciliar, como viver a tensão entre esse tipo de conhecimento que para mais ou menos ao nível da sensibilidade para alcançar o conhecimento que, sendo histórico, nos entrega as razões de ser atuais pelo menos do fato.
Tereza: Seria como se o intelectual tivesse que colocar sua teoria em risco?
PAULO FREIRE
Ótima pergunta, obrigado.
Eu diria mais o seguinte: eu acho que não há criatividade sem risco, nem há desenvolvimento intelectual sem risco. Para mim uma das coisas terríveis da educação que nós estamos vivendo no Brasil é que ela vem sendo sobretudo uma educação da resposta e não uma educação da pergunta, da pergunta fundamental. Eu acho que para uma filósofa essa coisa bate muito. A impressão que eu tenho é que nós estamos entrando nas salas com respostas cujas perguntas fundamentais se perderam no tempo, e a gente nem sabe quais foram elas mas a gente chega dá as respostas ao educando. E o educando pensa: eu nem perguntei. E essa ação da resposta castra a curiosidade necessária do educando que teria que se expressar na pergunta. Agora, veja: o ato de perguntar que faz parte fundamentalmente do ato de conhecer não pode ser assumido sem risco. Pra mim não é possível conhecer sem arriscar-se.
Adriano.
Uma parte da nossa tradição universitária faz com que a gente coloque teoria e prática lado a lado e separadas às vezes. É muito comum a gente ouvir na universidade: se aprende para poder aplicar depois. Você vai, estuda e vem aqui aplicar. Pelo o que tu está dizendo, eu estou vendo o explodir do político, o emergir da política. Quando a gente desvela ciência naquilo que fazemos, e estou supondo fazendo como os intelectuais comprometidos com os grupos populares... Então quando a gente desvela, garimpa a ciência dentro daquilo que fazemos, (por isso eu chamei de explosão) a gente está estudando as decorrências políticas, daí emerge o político, porque a gente vai ver que aquilo que fizemos está grávido de conceito e tem repercussões que, uma vez faladas, são maiores do que a simples enunciação. Porque desvelar supõe, como tu dizias há tempos já, decodificação, e decodificação é o ato político porque supõe explicitada a relação.
Quero acrescentar ao Adriano… você poderia, ao narrar alguma experiência de educação, explicitar ou falar um pouco mais daquilo que a gente vê acontecer sempre quando as pessoas, os educadores, as educadoras tentam vivenciar essa educação. Em grupos populares, em educação popular, mesmo quando você fala… e hoje a gente vive, por exemplo, muito forte a ideia de consciência do grupo…. a criatividade fica muito forte. O político é muito presente. E o gostar, o interessar, esse conhecer esse mundo ou trabalhar nesse mundo com muito entusiasmo, humor e alegria. Não sei se relaciona com a sua vida… você poderia explicitar um pouco isso narrando alguma prática concreta sua.
PAULO FREIRE
Eu faria uma contraproposta. Como estamos numa reunião muito informal em que a gente espera ser útil ou criar um produto que possa ser útil depois... Eu entendi perfeitamente a tua questão e eu teria alguma coisa pra dizer como eu vejo a questão. Mas quem sabe posteriormente, mesmo que pela própria natureza desta reunião, eu deva ser em certos momentos uma espécie de centro das perguntas mas talvez fosse interessante se alguém aqui… coincidentemente você me fez algumas referências sobre isso antes de começarmos essa conversa aqui. Talvez fosse interessante que alguém aqui, vocês que tem muita experiência, vocês que tem vivido isso, dissessem como vocês têm experimentado essa posição, essa atitude de grupos populares que participam de um trabalho educativo, que parte deles e não de nós. E eu digo depois como eu vejo essa questão…
Para para trocar a fita, encerra esta gravação.
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Participaram da entrevista:
- Zilda Santesso, orientação do serviço de apoio ao estudante na Unicamp. Tem trabalho popular num dos bairros da periferia de Campinas
- Debora Mazza, assessora da secretaria de promoção social da prefeitura de campinas para assuntos relacionados com Educação. Mestranda em ciências sociais aplicadas a educação na unicamp
- Gina, orientadora educacional no serviço de apoio ao estudante. Trabalha também num bairro periférico de Campinas
- Adriano, educador. Assessorando dois trabalhos em educação popular, acompanha o trabalho do Paulo na Unicamp.
- Elisabete, trabalha na área da periferia de Campinas.
- Maria Tereza Papaleu, de Porto Alegre. Como educadora no ensino secundário e um trabalho de periferia em Canoas. Dentre suas paixões estão a filosofia e a educação.
A segunda é a de negar a validade de tudo o que se faz na área popular, a de negar a validade e a importância do senso comum. A segunda seria a dicotomia, a negação do senso comum e a única aceitação da rigorosidade acadêmica. Então, essa postura… enquanto a primeira é uma postura basista que conduz a um certo espontaneísmo, um certo populismo e que distorce a prática popular, a segunda é elitista. Ambas são autoritárias no meu entender. Um autoritarismo elitista do lado de certos teóricos que terminam sendo mals teóricos, principalmente porque cortam, porque não descobrem que a teoria é histórica e por isso tem historicidade… a teoria não é um à priori do mundo, um à priori da história, não: ela se dá na história, ela se dá na medida em que o ser humano primeiro praticou o mundo, primeiro alterou e cambiou o mundo. E então no transformar o mundo vem embutida uma certa explicação que ilumina o próprio ato. Então eu acho que o grande problema da gente como intelectual que adere a transformação radical da sociedade é saber até que ponto, na nossa caminhada, nós vivemos a experiência da coerência. De um lado negando, fugindo ao perigo e à tentação das explicações e das práticas basistas; do outro lado, de como correr também para longe das tentações elitistas. Então, para concluir a tua pergunta e de certa maneira bater um pouco no que Adriano colocava antes, eu acho…. e nisso Gramsci também, nisso que eu vou dizer, ele é muito claro…. no fundo eu acho que o que a gente teria que fazer era juntar à sensibilidade popular diante do concreto, a nossa capacidade de apreensão crítica do concreto. Eu acho que, nem a sensibilidade só (que é tipicamente popular) explica o fato, e a tentativa de compreensão do fato a nível de apreensão crítica que negue a sensibilidade… eu diria agora: a criticidade que não se molha da sensibilidade, para mim distorce o seu achado. Eu acho que um dos trabalhos nossos, exatamente o de como viver essa tensão permanente entre o conhecimento que fica ao nível da sensibilidade do fato que é preponderantemente o que se dá na área popular, que oferece (eu penso que é), que explica dar vez que seja…. Quero dizer: como conciliar, como viver a tensão entre esse tipo de conhecimento que para mais ou menos ao nível da sensibilidade para alcançar o conhecimento que, sendo histórico, nos entrega as razões de ser atuais pelo menos do fato.
Tereza: Seria como se o intelectual tivesse que colocar sua teoria em risco?
PAULO FREIRE
Ótima pergunta, obrigado.
Eu diria mais o seguinte: eu acho que não há criatividade sem risco, nem há desenvolvimento intelectual sem risco. Para mim uma das coisas terríveis da educação que nós estamos vivendo no Brasil é que ela vem sendo sobretudo uma educação da resposta e não uma educação da pergunta, da pergunta fundamental. Eu acho que para uma filósofa essa coisa bate muito. A impressão que eu tenho é que nós estamos entrando nas salas com respostas cujas perguntas fundamentais se perderam no tempo, e a gente nem sabe quais foram elas mas a gente chega dá as respostas ao educando. E o educando pensa: eu nem perguntei. E essa ação da resposta castra a curiosidade necessária do educando que teria que se expressar na pergunta. Agora, veja: o ato de perguntar que faz parte fundamentalmente do ato de conhecer não pode ser assumido sem risco. Pra mim não é possível conhecer sem arriscar-se.
Adriano.
Uma parte da nossa tradição universitária faz com que a gente coloque teoria e prática lado a lado e separadas às vezes. É muito comum a gente ouvir na universidade: se aprende para poder aplicar depois. Você vai, estuda e vem aqui aplicar. Pelo o que tu está dizendo, eu estou vendo o explodir do político, o emergir da política. Quando a gente desvela ciência naquilo que fazemos, e estou supondo fazendo como os intelectuais comprometidos com os grupos populares... Então quando a gente desvela, garimpa a ciência dentro daquilo que fazemos, (por isso eu chamei de explosão) a gente está estudando as decorrências políticas, daí emerge o político, porque a gente vai ver que aquilo que fizemos está grávido de conceito e tem repercussões que, uma vez faladas, são maiores do que a simples enunciação. Porque desvelar supõe, como tu dizias há tempos já, decodificação, e decodificação é o ato político porque supõe explicitada a relação.
Quero acrescentar ao Adriano… você poderia, ao narrar alguma experiência de educação, explicitar ou falar um pouco mais daquilo que a gente vê acontecer sempre quando as pessoas, os educadores, as educadoras tentam vivenciar essa educação. Em grupos populares, em educação popular, mesmo quando você fala… e hoje a gente vive, por exemplo, muito forte a ideia de consciência do grupo…. a criatividade fica muito forte. O político é muito presente. E o gostar, o interessar, esse conhecer esse mundo ou trabalhar nesse mundo com muito entusiasmo, humor e alegria. Não sei se relaciona com a sua vida… você poderia explicitar um pouco isso narrando alguma prática concreta sua.
PAULO FREIRE
Eu faria uma contraproposta. Como estamos numa reunião muito informal em que a gente espera ser útil ou criar um produto que possa ser útil depois... Eu entendi perfeitamente a tua questão e eu teria alguma coisa pra dizer como eu vejo a questão. Mas quem sabe posteriormente, mesmo que pela própria natureza desta reunião, eu deva ser em certos momentos uma espécie de centro das perguntas mas talvez fosse interessante se alguém aqui… coincidentemente você me fez algumas referências sobre isso antes de começarmos essa conversa aqui. Talvez fosse interessante que alguém aqui, vocês que tem muita experiência, vocês que tem vivido isso, dissessem como vocês têm experimentado essa posição, essa atitude de grupos populares que participam de um trabalho educativo, que parte deles e não de nós. E eu digo depois como eu vejo essa questão…
Para para trocar a fita, encerra esta gravação.
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Participaram da entrevista:
- Zilda Santesso, orientação do serviço de apoio ao estudante na Unicamp. Tem trabalho popular num dos bairros da periferia de Campinas
- Debora Mazza, assessora da secretaria de promoção social da prefeitura de campinas para assuntos relacionados com Educação. Mestranda em ciências sociais aplicadas a educação na unicamp
- Gina, orientadora educacional no serviço de apoio ao estudante. Trabalha também num bairro periférico de Campinas
- Adriano, educador. Assessorando dois trabalhos em educação popular, acompanha o trabalho do Paulo na Unicamp.
- Elisabete, trabalha na área da periferia de Campinas.
- Maria Tereza Papaleu, de Porto Alegre. Como educadora no ensino secundário e um trabalho de periferia em Canoas. Dentre suas paixões estão a filosofia e a educação.