Vivemos um tempo de festa: natal e passagem de ano. Natal, natalício, natalidade. Como se uma vida nova estivesse por acontecer, uma espécie de parimento. Sim, parir uma vida nova. E o ano novo ascende este tipo de pensamento. É como se um ciclo se fechasse e um novo ciclo se abrisse. Conheço uma pessoa que faz listas de desejos, de afazeres, de ambições etc. Todo final de ano visita sua lista para checar seu ano em realizações e inaugura uma nova lista para o ano vindouro. Para ela isso afirma possibilidades: coisas acontecem… e isso movimenta sentimentos, carrega emoções.
Vem quando bate uma saudade / Triste, carregado de emoção / Ou aflito quando um beijo já não arde / No reverso inevitável da paixão / Quase sempre um coração amargurado / Pelo desprezo de alguém / É tocado pelas cordas de uma viola / É assim que um samba vem
No início de 2019 recebi o convite para esta coluna no Jornal Cidade. O ambiente era musical, estávamos numa roda de samba. Conversamos rapidamente a respeito do tema geral da coluna: o cotidiano, a política. Optamos pela potência política da arte. Já nos primeiros textos fui me dando conta que escrever com música, falar com música produz uma escrita interessante. Isso: falar com música.
Quando um poeta se encontra / Sozinho num canto qualquer do seu mundo / Vibram acordes, surgem imagens / Soam palavras, formam-se frases
Escrever é um exercício que exige tempo, atenção, presença, pensamento. É uma espécie de tempo fora do tempo e lugar fora do lugar. Suspensão! É como se o escritor estivesse no mundo, presente no mundo, vivendo as coisas próprias do mundo mas sublimando-o. É, por exemplo, estar aberto às canções que nos tocam. Sim porque as canções estão por aí, tocando e nos tocando o tempo todo. O escritor aguça sua atenção, abre seus canais perceptivos até que uma canção, um refrão, um trecho toca o corpo. Isso: uma canção que toca também toca o escritor numa espécie de atravessamento. Vibra e faz vibrar um pensamento novo, uma ideia.
Mágoas, tudo passa com o tempo / Lágrimas são as pedras preciosas da ilusão / Quando, surge a luz da criação no pensamento / Ele trata com ternura o sofrimento / E afasta a solidão
‘A luz da criação no pensamento’ pode ser entendida aqui como colocar ideias lado a lado. Por ideia com ideia, por pensamento com pensamento. Por com, com por. Compor seria criar? em parte sim, em parte não. Porque num mundo tão antigo quanto este nosso mundo, talvez nada seja novo. Mas para nossa breve existência, uma canção inédita é criação, novidade. Compositor é quem faz composição. Junta pedaços, mistura elementos, ideias, pensamentos. As palavras estão prontas para ser misturadas, juntadas, postas parte a parte, postas com outras palavras. Mas a criação é isso: algo que vem de dentro e ganha as luzes deste velho mundo tomado como novidade. Parimento.
Quando bate uma saudade é um samba de Paulinho da Viola (RJ, 1942). Filho do músico Cesar Faria, cresceu num ambiente musical. Conheceu Jacob do Bandolim e Pixinguinha, entre outros músicos que se reuniam para fazer choro, cantar valsas e samba.
Ivan Rubens
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