Tinha eu 14 anos de idade / Quando
meu pai me chamou / Perguntou-me se eu queria / Estudar Filosofia / Medicina ou
Engenharia / Tinha eu que ser doutor
Ela nasceu
numa família simples do interior. O pai foi um operário brilhante, desses que
produz suas próprias ferramentas. Um criador de problemas de toda ordem. Digo
problema no sentido forte da palavra. Quando ele se via diante de um problema,
procurava superá-lo criando uma situação nova. Veja que não falei em solução do
problema. Explico: para ele um problema não demandava uma solução. A solução
diminui a criação de novidades. Era um homem de possibilidades, criava
possibilidades, expandia a vida e ampliava o mundo. Agora encontrei as palavras
precisas: ele era um criador de mundos. Uma fotografia nos dá a imagem
simbólica do que estou tentando dizer com palavras: uma criança tentando
equilibrar na bicicleta, alegria e medo estampados no rosto negro, um lindo
sorriso infantil e a ousadia de quem vai aos poucos se soltando das mãos do
pai. Era um grande homem. Um homem que é mais de mil. Mil gestos, poucas
palavras. Há de mil sons.
Da mãe
herdou a convicção, firmeza e ternura. Com a mãe aprendeu muita coisa, da
alquimia gastronômica às bruxarias na cozinha, do encanto com a transformação
dos alimentos e sabores aos cuidados com o corpo. Aprendeu a cuidar. Isso
mesmo, cuidado é algo que se aprende. Aprendeu a cuidar da terra, cuidar das
pessoas, cuidar das coisas, cuidar da casa. Casa e corpo aqui são quase
sinônimos. Com o tempo foi aprendendo também a cuidar das coisas do mundo.
Mas a minha aspiração / Era ter um
violão / Para me tornar sambista / Ele então me aconselhou / Sambista não tem
valor / Nesta terra de doutor / E seu doutor / O meu pai tinha razão
Ela poderia
ser o que quisesse. Engenheira? advogada? médica? Todas as profissões que, acredita-se
garantir ascensão social e financeira estariam ao alcance das suas mãos.
Determinada como a mãe, inventiva como o pai, ela trabalha muito. Reconhece o
prestígio e o dinheiro, mas não para nisso. Não se contenta com as superfícies.
Ela mergulha fundo, procura tesouros escondidos no fundo do mar.
Vejo um samba ser vendido / E o
sambista esquecido / E seu verdadeiro autor / Eu estou necessitado / Mas meu
samba encabulado / Eu não vendo não senhor
Para ela,
viver é leveza e alegria. Valoriza sobretudo as artes. No cinema ela cria
personagens, nas canções ela pensa, na poesia ela dança. Com essa ginga de
passista desenvolveu uma habilidade incrível de lidar com as pessoas. Na vida
aprendeu que o mundo é povoado de gente diferente dela. Aprendeu que a morte é
inexorável e a diferença é condição. Assim ela se produz humana com indígenas,
nos quilombos, com os sem teto e sem terra, com pescadores e ribeirinhos. Deseja
os ambientes equilibrados e alimentação saudável. Luta no campo e na cidade,
afirma a condição feminina e a libertação dos homens da opressão do machismo.
Enfrenta a desigualdade social e econômica. Vive entre os esfarrapados do mundo
e com eles luta. Poetisa de povo, mestra em gente, doutora em vida melhor para
todos e todas. Ela é professora porque acredita que o mundo pode ser melhor,
sempre. 14 anos é uma canção do Paulinho da Viola.