Dos meus quase 40 anos vividos, vivi também outros 50 anos da vó Quinha. Pensando que ela tinha tanta lembrança anterior a mim, tive o privilégio de ouvir muuuiiiitttooossss causos, presenciei muitos aconselhamentos, e também certas aflições da vida….
Algumas lembranças da infância dela e do que vivemos me vieram à memória enquanto lia um texto que meu amado irmão escreveu para este dia primeiro de julho de 2018 quando comemoramos aniversário de 90 anos. Vou falar de alguns episódios, incluindo alguns “grandes delitos” que ela cometeu:
para poder ler romance escondido de sua mãe, a bisa Maria, que a proibia desse tipo de leitura, ela usava suas artimanhas de garota: subia nos galhos mais altos das árvores do quintal. E, mais perto das nuvens no céu, voava nas asas da literatura brasileira;
- A ânsia de esperar seu pai chegar do trabalho para mimá-la e embebedar-se de sua mansidão;
- O prazer de ornamentar, com as flores de papel que fazia, o fio do lustre da casa;
- Subir o mais alto nas árvores;
- Do mais, ter podido ser apenas uma criança que foi muito desejada e amada….
Eu penso que a palavra que resume a minha vó é “cuidado”. Ela é, desde sempre, muito atenta tanto aos detalhes quanto aos grandes atos. Detalhes que poderiam nos parecer menores mas que, com o tempo, percebemos a grandeza dos detalhes. Os detalhes, os pequenos gestos, porque é na simplicidade que estão as grandes revelações. Assim ela sempre nos revelou os valores que nos transmitia: cuidado com a casa, com os amigos (que cultivou muitos), com os problemas e defeitos de todos nós. Ela nos ensinou que não se é humano. Porque ser humano não é algo dado, fixo, pronto e acabado. Não !!! Ser humano é sempre um vir a ser humano. É um esforço paciente, cotidiano, cuidadoso de tornar-se humano. E para tornar-se humano, mais humano, o desafio permanente é o de cuidar de si, estar atento a si e ao próximo, é cuidar dos encontros que acontecem e nos acontecem ao longo da vida. É cuidar da casa. E são tantas casas: o corpo é a casa do espírito, a igreja é a casa, a cabeça é a casa do pensamento e da imaginação, a cidade é casa de uma sociedade inteira, o Brasil é casa, o mundo é casa. O livro é casa, a poesia é casa, a música é casa. E que todas essas casas são habitações de Deus.
É tentar ser melhor a cada dia. Ela sempre teve um olhar muito humano com todos à sua volta e com os que estavam longe (mas aquecidos por seus sentimentos de amor e carinho).
Impossível não lembrar:
- daquele pão quentinho cedo?
- da campainha que tocava na casa da vizinha para avisar e ser um socorro? isso mesmo: havia um interruptor que dona Auzira acionava da casa ao lado em caso de emergência.
- do lanche para levar na escola esperando no portão antes das 7h da manhã? (isso é de uma delicadeza e de um carinho indescritível)
- Impossível não lembrar:
- das revoadas de pássaros, no início e no final de cada dia, sem dizer: os pássaros da vó !
- do carinho com que recebia, e recebe até hoje, as amigas para o círculo bíblico;
- As jogatinas intermináveis de buraco?…. Sábado era sagrado!
- a ritualística dos nossos dias de aniversário;
- As trocas das toalhinhas da casa a cada ocasião especial......
Impossível não lembrar das noites de cantoria! são tantas as canções antigas que fazem parte de nosso repertório musical que aprendemos na sua voz afinada e doce;
A brincadeira de observar as placas dos carros na estrada durante nossas viagens; qual é a música? e….. olhar pela janela do carro e observar a mesma árvore, o ipê amarelo, aquela baixada, o rio, a ponte…. assim aprendemos a perceber as estações do ano, a seca, a temporada de chuva… com essa prática ela, sem anunciar, nos mostrava que o mundo é encantador. Ela despertava em nós uma curiosidade com o planeta e nos ensinava, sem grandes alardes, a urgência de cuidar da Terra, mesmo que aqui numa pequena parte de sua imensidão.
Ela nos ensinava a perceber a vida pulsante da natureza e em nossa dimensão humana: Veja a vida! Não deixe ela apenas passar….
Dentre tantos ensinamentos, aprendi crochê, tricô, costura, produzir coisas com as próprias mãos para embelezar ou presentear. Quem não passava o ano todo escolhendo o cardápio do almoço do próprio aniversário? E ela se dedicava em fazê-lo, preparava a comida com um carinho especial.
Por não estar na idade adequada, fiz o antigo pré primário duas vezes. ´meio que típico dos irmãos não perderem uma oportunidade de ‘zoar’. Os meus irmãos diziam que eu havia repetido o pré. Penso hoje em dia que vivi um ano particularmente especial…. tive uma oportunidade muito especial, única eu diria: a presença diária da minha avó Mariquinha. Fiquei em sua companhia um ano inteiro. Uma espécie de preparação intensiva para o início da minha vida (por assim dizer) formal. Foi um ano maravilhoso. Assim como é simplesmente maravilhoso ser neta da Mariquinha, conviver com ela, amá-la e receber seu amor.
Ivanessa Jordão Dário Chill
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A infância do amor: os 90 anos de Maria Witzel Jordão
Dia desses uma vibração no meu celular causou uma certa vibração em mim. Isso mesmo: a chegada de uma mensagem me causou terremotos. Uma infância se fez em mim. Passei a brincar com o tempo como aquela criança que, brincando, parece habitar um mundo à parte, um mundo sem o tempo marcado pelo relógio, um mundo fantástico de fabulações e fantasias. Como se o relógio parasse e existisse no mundo apenas a criança, seus brinquedos e sua imaginação. Como disse o filósofo pré-socrático Heráclito de Eféso (535 – 475 dC), uma criança criançando.
No meu celular chegou uma imagem que não era uma fotografia qualquer: Maria Witzel Jordão e Aurora de Carvalho Bartiromo frente a frente. Olhares se atravessando e entre elas 90 anos. Presentes tataravó e a recém nascida. Algumas perguntas me ocorreram na mesma velocidade em que meus olhos curiosos percorriam a imagem: o que minha avó estaria pensando? Mais do que isso, o que diria Mariquinha para a recém nascida Aurora? Me ocupei um pouco desta questão quando outra pergunta me ocorreu: o que dizer para uma mulher às vésperas de completar 90 anos de idade? Poderia encher de vãs palavras muitas páginas... mas, voltemos à fotografia.
Estava ali registrado: duas vidas, 90 anos e muitas vidas. Nos braços de Mariquinha estava Aurora, sua segunda tataraneta. Mariquinha lançava para Aurora um olhar enigmático, alegre e carinhoso. Um olhar emoldurado por um sorriso monalítico, um quase ri comunicativo. Como se dizendo alguma coisa com seu olhar penetrante e doce, forte e meigo. Basta pensar um pouco para surgir uma lista extensa de temas, de assuntos, de conselhos, de recomendações que os olhos da tataravó poderiam sugerir para a tataraneta. Palavras, frases, afirmações que, certamente, tornariam a caminhada da pequena mais leve, mais suave, mais tranquila. Mas quais seriam exatamente as palavras cuidadosamente escolhidas para compor esta frase? Fiquei pensando se uma única palavra resumiria esse diálogo silencioso, mudo de palavras e inesgotável em conteúdo, em sabedoria de vida.
Tentei saber da Mariquinha o que ela diria para Aurora. Ela me disse que seu neto Francisco, agora avô pela primeira vez, conversa com a pequenina. Que ela ouviu o infante marujo dizendo: você é linda, você é muito querida aqui, você é muito amada, e coisas desse tipo. Num primeiro momento pensei que ela esquivara da minha pergunta mas, logo percebi a grandeza de sua resposta. Francisco experimenta uma infância em ser avô e constitui uma linguagem entre ele e Aurora; eu experimento uma infância ao olhar aquela linda fotografia e tentar uma linguagem para a festa que se produz em mim; Aurora tem diante de si um mundo imenso de afecções que, neste momento é experimentado à flor da pele em frios, calores, umidades... já podem estar chegando os primeiros cheiros, as cores, os sons como aquele percebido na voz doce do avô. Daqui algum tempo chegarão as palavras, as frases, e com a linguagem também chegarão os primeiros entendimentos. Porque entender vem depois de sentir.
Aurora, sua segunda tataraneta, aquela que é como o nascer do sol, instaura em nossas vidas uma nova vida. E nós, descendentes da Mariquinha e seu amor por Juca Jordão que vive em nossos corações, 2 filhas, 3 netas e 2 netos, 4 bisnetas e 3 bisnetos, 2 tataranetas, que desde os primeiros raios de sol de nossas vidas recebemos todo amor da Mariquinha queremos, neste dia que remontam 90 anos, dizer de todo nosso sentimento por ela em apenas uma única palavra: AMOR!
publicado no jornal Diário de Rio Claro em 01 de julo de 2018